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2 sambas e 1 bicentenário: as Histórias do Brasil e o que fazer com ele?

Rio de Janeiro, 01 de novembro de 2021

Mário Brum*


Nós historiadores, muitas vezes tão desafeitos aos números, costumamos dar especial atenção às datas redondas. Ano que vem é uma delas: a ‘nação’ fará 200 anos. Datas assim geram certo debate social sobre os rumos do país a partir do olhar para o passado. O protagonista de um romance de Umberto Eco (A Misteriosa Chama da Rainha Loana) afirma que se se quer ir em frente, é preciso saber de onde se veio. A História, tão maltratada hoje em dia em reformas no Ensino que diminuem sua importância, reduzindo seu peso nos currículos, pode adquirir, ao menos em discursos, certo prestígio para fazer com que o Brasil olhe para trás, para ver qual caminho foi trilhado, para escolher os rumos do futuro…



Monumento à Independência do Brasil, escultor Ettore Ximenes, 1922.

Crédito: Assembleia Legislativa de São Paulo.


Fosse o Brasil uma novela ou uma série, o roteirista seria muito criticado, ou muito elogiado, por alterações inesperadas no enredo, principalmente nos últimos anos. Ou às vezes, pelas coisas se encaixarem bem demais… Assim, nosso roteiro nos leva a termos uma eleição para poderes executivos e legislativos nas esferas estadual e federal no nosso Bicentenário. De forma simples: escolheremos o presidente num clima de polarização que vem marcando o país há alguns anos e que pautará as eleições e o debate sobre nossos 200 anos.


Em meio a isso, as Histórias do Brasil vão se enfrentar. Histórias sim, porque o passado, embora seja único, além da impossibilidade de alcançá-lo no presente em sua totalidade, também não foi vivenciado, registrado, narrado, pesquisado de forma igual pelos diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira. E são esses passados que continuarão a se enfrentar em 2022.


A História do Brasil, pensada como uma disciplina a ser construída e ensinada à sociedade, surge em 1838 pelas mãos de homens de elite reunidos através do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), menos de 2 décadas após a Independência. em meio a uma nação que sob a Regência, vivia a ameaça de repetir o destino da América Espanhola e se fragmentar em repúblicas, sob ameaça ainda de liquidarem a Escravidão… a união nacional dos ‘homens de bem’ da época necessitava ser estrutrada numa narrativa em que o glorioso passado do Brasil se constituiria numa trilha iniciada em Portugal (e antes desse, nos antigos tempos greco-romanos que deixaram ao mundo o legado da Civilização e do Cristianismo) que transformaria essa terra e seus bárabaros povos, aqui nascidos, trazidos ou misturados em uma nação civilizada,


Para isso, caberia ao homem branco de ascendência européia, dotado de espírito desbravador, empreendedor e racional, a condução da política e dos negócios, da arte e das ciências, do saber e das leis. Assim, foi necessário também dar logo o trono a quem de direito: um Orleans e Bragança… consolidava-se o Império por mais algumas décadas, sob a monarquia, terra/agricultura e escravidão, como tão bem tratou o recém falecido Ricardo Salles na obra Nostalgia Imperial.


Assim, foi sendo escrita uma história do Brasil. Feita por grandes homens, que dotados de um espírito superior de apurada racionalidade, tomaram sempre as melhores decisões. Uma permanência anunciada, uma Independência declarada, uma Abolição decretada (aqui foi por uma mulher), uma República proclamada… sempre o anúncio de uma ação vinda do alto.


E para não dizer que não falamos de samba, dois são emblemáticos. Os dois levaram as agremiações a serem campeãs e foram produzidos em momentos chaves da História. O primeiro deles é o samba “Liberdade, Liberdade! Abre As Asas Sobre Nós”[1], da Imperatriz Leopoldinense. O ano de 1989 pode ser considerado um desfecho da Ditadura Militar. Pela primeira vez em 30 anos o povo escolheria seu presidente. Vale dizer que até então, um brasileiro ou brasileira de 45 anos jamais tinham votado para presidente. Podemos estender inclusive que as eleições de 1960 ainda tinham sérias limitações, como as impossibilidade do voto de analfabetos ou ainda, a restrição ao funcionamento de diversos partidos.


Com os seguintes versos Da guerra nunca mais / Esqueceremos do patrono, o duque imortal / A imigração floriu de cultura o Brasil / A música encanta e o povo canta assim /Pra Isabel, a heroína / Que assinou a lei divina /Negro, dançou, comemorou o fim da sina /Na noite quinze reluzente /Com a bravura, finalmente /O marechal que proclamou /Foi presidente percebe-se uma História do Brasil contada ainda nos moldes estrutrados no Império: grandes homens (quase todos) e suas grandes ações. A ‘cultura’ só foi trazida quando chegaram os imigrantes. Uma História do Brasil ainda atribuindo o destino da nação às mãos dos grandes homens, brancos e de elites.


Passados 30 anos, em 2019 a Mangueira traz à avenida o samba “História pra ninar gente grande”[2] . Novamente, o momento é significativo: logo após a eleição de Bolsonaro como presidente, em que parte da sociedade adere ao discurso de resistência à extensão de direitos e à proteção de vários segmentos da sociedade: indígenas, negros e quilombolas, mulheres, LGBT, com uma visão da sociedade e uma História que enaltece heróis brancos e reduz as falas de outros segmentos à ‘ideologia’ ou, um jargão mais recente, ‘mi-mi-mi’.


Assim, em tom de resistência, o samba da Mangueira fez uma crítica contundente à determinada maneira que a História do Brasil tem sido contada, e defendida, que desconsidera grande parte da sociedade como sujeitos da História, exatamente por serem desconsiderados como portadores de direitos: Brasil, meu nego Deixa eu te contar / A história que a história não conta / O avesso do mesmo lugar / Na luta é que a gente se encontra / Brasil, meu dengo a Mangueira chegou / Com versos que o livro apagou / Desde 1500 Tem mais invasão do que descobrimento / Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado.


Nesse Bicentenário, ano de eleição, é preciso lutar por uma História do Brasil que não apenas considere negros, indígenas, mulheres, LGBTs, setores historicamente postos de forma subalterna na sociedade, porque apagados da História, como sujeitos da história. mas como artífices em três sentidos principalmente:


O primeiro deles é da História como processo, como as mais diversas ações humanas ocorridas no decurso do tempo. Assim, é preciso compreender que essas ações são feitas por todos esses segmentos e que por isso, eles precisam ser contemplados pelas narrativas, e aqui é o segundo sentido: que eles e elas sejam pensados e tratados como sujeitos da História. E por fim, o terceiro sentido, dentre as ações humanas, a serem pensadas e narradas, termos uma História como uma ciência e disciplina, pesquisa e ensino, que seja produzida, pensada, escrita e ensinada por esses mesmos sujeitos, que possam ter direito a tratar, pensar e narrar seu passado. Para que possam, enfim, ter direitos a serem reconhecidos como parte integrante do passado e do presente da nossa sociedade.


Que nos nossos 200 anos, em ano de eleição, esse Brasil de diversas cores seja respeitado, narrado, escrito, pensado e protagonize páginas vindouras da História, mais bonitas, coloridas e felizes.

[1] Samba composto por Niltinho Tristeza, Preto Jóia, Vicentinho e Jurandir.. [2] Samba composto por Danilo Firmino / Deivid Domênico / Mamá / Márcio Bola / Ronie Oliveira / Tomaz Miranda.


*Mário Brum é professor de História (UERJ).

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