Rio de Janeiro, 18 de julho de 2022.
Luciene Carris*
O ano era 2010 quando conheci virtualmente o professor Antonio Carlos Robert Moraes, apelidado pelos mais próximos como Tonico. Naquele momento, não existia os aplicativos de conversas como utilizamos atualmente, tão mais práticos. Depois de trocarmos alguns e-mails e alguns telefonemas, viajei até Universidade de São Paulo, onde o conheci pessoalmente. A intenção era publicar a minha tese de doutorado por uma editora paulista, a qual ele era vinculado. De fato, isto ocorreu alguns anos depois, precisamente em 2013. Mas no meio desse processo, me vi envolvida em um projeto de estágio pós-doutoral no Laboratório de Geografia Política, então coordenado por ele, sobre a questão da demarcação das fronteiras brasileiras no final do século XIX, o qual ele foi o supervisor.
Crédito: wix.
Entre as reuniões do grupo de pesquisa e a participação em algumas disciplinas na graduação e na pós-graduação, aliás extremamente concorridas, acabei conhecendo Tonico mais de perto, bem como cultivei algumas amizades que mantenho até os dias de hoje. Para além da experiência na Universidade de São Paulo, guardo com carinho as lembranças das suas aulas realizadas no anfiteatro. A formação em Ciências Sociais e Geografia, a estreita proximidade com a História, davam o tom característico de cada aula. Não posso deixar de mencionar a gargalhada particular e a ironia das piadas, que descambavam para os comentários sobre o futebol ou sobre o Rock, aliás um dos gêneros musicais que ele mais gostava.
Ainda guardo a memória das suas aulas, das nossas conversas e das suas piadas, lembro bem do seu humor e da sua disposição genuína. Relendo algumas de suas obras me deparo com essa passagem da introdução livro Geografia: Pequena História Crítica, a reedição de 2005, um manual ainda bem difundido e utilizado pelos egressos nos cursos de Geografia e por muitos estudiosos. Acredito que ainda sintetiza o atual momento e o papel transformador que devemos ter perante a sociedade, e, também, como tudo isso era caro ao professor Moraes, que ressaltava a importância de “cultivar a teoria e buscar a explicação do mundo, para agir na sua transformação”.
Crédito: Annablume.
Aliás, o fio condutor da investigação Antonio Carlos Robert Moraes incidia na formação do território brasileiro através da relação basilar entre a geografia e a história respectivamente. Nesta lógica, o território era compreendido como um resultado das ações culturais, políticas e econômicas empreendidas pela sociedade. Nesse sentido, ao longo da pesquisa, alguns novos conceitos surgiram através das leituras dos escritos de Moraes como a ideia de Estado Territorial, que:
(...) constitui um elemento central deste imaginário e importante componente na consolidação das identidades nacionais, daí os pleitos territoriais e a forma nacional de legitimação do controle dos espaços. A especificidade história da espacialidade do nacionalismo se expressa na noção de pátria, que constituiria a projeção geográfica de povo e o fundamento do território estatal-nacional, este visto como a expressão física da nação (seu hábitat, seu berço) (MORAES, 2002, p. 73).
Assim, compreendia que como legado do passado colonial, o território brasileiro poderia ser caracterizado como “território usado” ou como “fundos territoriais”, aliás categorias que se apresentavam como desdobramentos dos estudos do geógrafo Milton Santos, como ele mencionava. Desse modo, o “território usado” corresponderia a uma área efetivamente apropriada. Quanto aos “fundos”, referiam-se a determinados espaços da soberania nacional que não foram totalmente aproveitados pelo Estado. Nesse último caso, situavam-se os “sertões”, as “fronteiras” e os lugares ainda sob soberania incerta, como uma herança típica do expansionismo luso-brasileiro no continente. A existência dos vastos fundos territoriais marcou profundamente a formação social brasileira, dando à dimensão espacial (e à Geografia, em consequência) um papel essencial no desenvolvimento da particularidade histórica do país. Daí, os meus estudos sobre o processo de demarcação das fronteiras, que teve a participação de algumas figuras ignoradas desta história como os integrantes dos comitês demarcatórios.
Tonico redigindo a Pequena História Crítica (novembro de 1980).
Revista Terra Brasilis, 2015.
Ao longo da sua trajetória abreviada aos sessenta e um anos de idade, publicou diversas obras, participou de inúmeras bancas de graduação, mestrado e doutorado, orientou e supervisionou projetos, bem como presidiu a banca da geografia do concurso de ingresso na carreira de diplomata no Itamaraty. Além disso, se destacou na elaboração de projetos de política ambiental e ordenamento territorial, e de outros programas sobre poluição marinha ligados à ONU. Não por acaso foi agraciado com a comenda da Ordem do Rio Branco, em 2001, pela importância do seu trabalho.
No último dia 16 de julho de 2022, completou-se sete anos de sua partida. Mas as lembranças continuam presentes entre aqueles que o conheceram. Assim, presto uma breve homenagem ao saudoso professor e pesquisador Tonico, que me inspirou, e continua a inspirar na minha trajetória acadêmica e pessoal.
Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.
Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal
Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos
(CORALINA, 2013, p. 106).
Referências:
Álbum de retratos do Professor Antonio Carlos Robert Moraes (1954-2015). Terra Brasilis, n. 5, 2015. Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/1548?lang=fr Acesso em: 17 jul. 2022.
CORALINA, Cora. "Meu Epitáfio". In: ______. Meu livro de cordel. São Paulo: Global, 2013.
CARDOSO, Luciene P. Carris. O lugar da geografia brasileira: a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945. São Paulo: Annablume, 2013.
_________. Intelectuais, militares e instituições na configuração das fronteiras brasileiras (1883-1903). São Paulo: Alameda, 2016.
MORAES, Antonio Carlos Robert de. Território na geografia de Milton Santos. São Paulo: Annablume, 2013.
_________. Geografia histórica do Brasil: capitalismo, território e periferia. São Paulo: Editora Annablume, 2011.
_________. “Notas sobre identidade nacional e a institucionalização da geografia no Brasil”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991.
_________. Bases da Formação Territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000.
_________. Geografia: pequena história crítica. São Paulo: Hucitec, 1999.
_________. Meio Ambiente e Ciências Humanas. São Paulo Annablume, 2005.
_________. Território e história no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2002.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Comments