Rio de Janeiro, 15 de maio de 2023
Carlos Eduardo Pinto de Pinto*
Em 1988, a Rede Globo investiu pesado em programas, vinhetas e reportagens sobre o fim da escravidão no Brasil, evento que completava 100 anos. Já tive oportunidade de tratar das incongruências desta celebração no artigo Vale tudo? O racismo estrutural na TV brasileira e a personagem negra expulsa da cozinha. Hoje gostaria de me dedicar à minissérie Abolição, produção independente dirigida por Walter Avancini, que fez dobradinha com República, exibida no ano seguinte para marcar o centenário da proclamação do regime republicano. Também já escrevi sobre essa obra aqui no Box, em O dia em que a Nova República invadiu minha TV.
Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles. circa 1882. Imagem em domínio público. Homens, mulheres e crianças, possivelmente escravizados, e o administrador (ou feitor) trabalham em terreiro de secagem de café. Fazenda Monte Café, Vale do Paraíba, Sapucaia, RJ. A representação que a série faz do trabalho escravizado na fazenda da Comarca de Campos se inspira em imagens semelhantes a essa, que registram os últimos anos antes da abolição.
Minha proposta é fazer uma análise panorâmica da série, buscando identificar qual leitura da abolição foi apresentada em sua narrativa. Vale remarcar que Abolição e República tiveram consultoria de Joel Rufino dos Santos, escritor e historiador atuante desde os anos 1960 (ZILBERMANN, 2021), que parece ter tido bastante influência sobre o modo didático com que os eventos históricos são apresentados. Embora Abolição tenha mais drama, partilha com República certo esquematismo, a começar pela abertura, que divide o elenco em núcleos, como “escravos”, “abolicionistas” e “Família Imperial”. Esse caráter se estende para o roteiro, que procura mapear personagens e ações que desembocaram na assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Um ponto que chama a atenção de partida é que a princesa Isabel (interpretada por Tereza Raquel) não ocupa lugar de destaque no desenrolar dos eventos. Ainda que sua atuação em prol da assinatura da lei não seja negada, em nenhum momento aparece como única responsável. Em dada sequência, enquanto conversa com abolicionistas, a regente afirma que está predisposta a assinar a lei, mas que antes seria necessário convencer o Parlamento e o Senado. Em outro momento, um cafeicultor desfavorável à abolição admite que a iminente assinatura resultava da pressão popular e da política internacional, restando pouca margem de manobra para tentar impedir. Como a corroborar tal perspectiva, a cada etapa da tramitação da lei ao longo dos primeiros dias de maio de 1888, a série exibe debates acalorados entre os políticos, seguidos de takes da participação popular nas tribunas e de festejos nas ruas, com expressiva presença de figurantes negros e negras.
Outro ponto interessante é que, a despeito de parte da história se desenrolar no Rio de Janeiro, Corte imperial, o protagonismo é exercido por Iná Inerã (Ângela Correa), uma personagem escravizada de uma fazenda na Comarca de Campos. A narrativa do primeiro capítulo se inicia com a imagem de uma “sinhazinha” sentada ao ar livre na fazenda, enquanto declama um poema, se sobrepondo ao corpo de Iná amarrado a um tronco ao fundo. Em seguida, um recuo no tempo permite compreender como a mulher escravizada chegou àquela situação: enquanto o casal de senhores concede alforria a três rapazes como parte da celebração de seus 25 anos de casamento, a montagem em paralelo exibe a senzala com muitos homens atados por ferros, com expressões que denotam extrema dor física. Ainda na mesma noite, quilombolas ateiam fogo à plantação da fazenda como estratégia para a fuga de parte dos escravizados. Nos capítulos seguintes, o senhor se dedica a uma investigação acompanhada de sessões de tortura para tentar descobrir o líder da ação (que ele pressupõe ser um homem), até compreender que é Iná a pessoa que busca. Em múltiplos diálogos, as rebeliões de escravizados ocorridas em alguns pontos do país, com destaque para São Paulo, são apontadas como fator de pressão para a assinatura da lei de abolição. E o fato de ser uma mulher a liderança que a série decidiu acompanhar cria um contraste instigante com o papel secundário, ainda que estratégico, desenvolvido pela princesa Isabel.
A ponte entre o núcleo rural e urbano é feita por Lucas Tavares (Luís Antônio Pilar), um dos rapazes alforriados no primeiro episódio. Ao chegar à Corte e tentar atuar como jornalista, ele trava contato com Ângelo Agostini (Edwin Luisi), fundador da Revista Illustrada, abolicionista e republicano famoso por suas charges políticas. Por meio de Agostini, conhece outros ativistas, como José do Patrocínio (Valter Santos), André Rebouças (Jorge Coutinho) e Lopes Trovão (Buza Ferraz). Nos comícios em prol da abolição, além da presença já conhecida dos personagens históricos negros (Patrocínio e Rebouças), chama a atenção a inserção de figurantes negros. Contudo, esse aspecto, que é um dos trunfos da série – por evitar representar a abolição como resultado da manipulação de meia dúzia de políticos e intelectuais brancos –, também é sua maior fragilidade. Afinal, em contraste com a complexidade das personagens negras da fazenda da Comarca de Campos, o núcleo urbano é pouco explorado – quem seriam essas pessoas negras que paravam no meio da tarde nas ruas da Corte para ouvir palavras de ordem em prol do fim da escravidão?
Essa lacuna talvez tenha a ver com o estágio em que se encontrava a historiografia sobre a escravidão urbana em 1988. Segundo levantamento de Ynaê Lopes (2006), datam justamente deste momento os primeiros trabalhos que se preocupariam com as peculiaridades dos escravizados domésticos ou colocados “ao ganho” – ou seja, postos a exercer tarefas variadas nas ruas ou em casas de terceiros, devendo pagar determinada quantia a seus senhores ou senhoras no fim de um período, com destaque para o livro Negro da rua, de Marilene Rosa N. da Silva (1988). Por serem muito recentes, tais pesquisas talvez fossem desconhecidas de Joel Rufino dos Santos, que não as teria incorporado ao roteiro. Existe um livro romanceado a partir da série, também intitulado Abolição (AVANCINI; SANTOS, 1988), que pode ser um bom material para um cotejamento futuro.
Do mesmo modo, em República a presença de pessoas negras nas ruas do Rio em 1889 é muito discreta: entre os personagens principais, apenas Lucas Tavares – que faz a conexão entre as duas séries – e Patápio dos Prazeres (Grande Otelo). Como já fiz em outro texto, me pergunto aqui: onde foram parar os ex-escravizados de Abolição? Afinal, historicamente sabemos que o Rio de Janeiro seguiu sendo uma cidade negra e que a república proclamada em 1889 precisou lidar com a questão social deixada pelo Império. Será que tal “sumiço”, em vez de uma falha de representação, se configuraria numa tentativa de demarcar simbolicamente os inúmeros mecanismos de eliminação da população negra que a história republicana produziu em seus pouco mais de 100 anos? Talvez um dado que permita corroborar essa leitura seja o fim da personagem Iná: depois da abolição, ela é condenada à prisão perpétua na Casa de Correção da Corte, acusada de ter liderado a série de motins na fazenda de seu antigo senhor. Após escapar com a ajuda dos mesmos quilombolas que organizavam com ela as rebeliões e fugas, o grupo sofre uma emboscada. Seus cadáveres jogados no solo compõem a última imagem de Abolição, gerando uma antítese com as festas do 13 de maio exibidas minutos antes, como a indicar que a conquista da liberdade continuaria ameaçada pela violência simbólica e física imputada contra pessoas negras. A luta estava só começando...
Referências bibliográficas
AVANCINI, Walter; SANTOS, Joel Rufino dos. Abolição. Rio de Janeiro: Record, 1988.
LOPES, Ynaê. Além da senzala: arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro: 1808-1850. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História Social, Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo- USP, 2006.
SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na rua. A nova face da escravidão. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.
ZILBERMAN, Regina. Joel Rufino dos Santos e a Nova História. Brasil/Brazil, revista de literatura brasileira, n. 34, n. 64, 2021. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/brasilbrazil/issue/view/4281. Acesso em: 15 mai. 2023.