Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 2024.
Luciene Carris*
A escolha de nomes para as ruas do Rio de Janeiro, frequentemente em homenagem a figuras masculinas, levanta questões sobre a representação e a memória na história urbana. É interessante observar que muitos bairros da cidade ainda carregam nomes de origem indígena como Copacabana, Guaratiba, Cachambi, Catete e Tijuca, por exemplo.
Crédito da imagem: Freepik.
Contudo, a existência de muitos nomes indígenas contrasta com o apagamento da presença indígena da história urbana, como evidenciado pela evolução urbana da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde comunidades indígenas outrora existiram, e foram violentamente expulsas ou dizimadas pelo governador Antonio Salema no final do século XVI. Bem próximo a Lagoa, o quilombo urbano de Sacopã resiste, mantendo viva a ancestralidade africana na zona sul carioca. Da mesma forma, a região conhecida como Pequena África, que abrange os bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa, foi reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Histórico da Humanidade.
Estátua do Curumim, obra do artista plástico Pedro Correia de Araújo intalada em 1979.
Crédito da imagem: Wikimedia.
O certo é que o ato de caminhar pelas ruas estimula reflexões sobre locais, identidades, paisagens, memórias e patrimônios. As placas, predominantemente com nomes masculinos, me levam a pensar sobre a presença feminina no espaço urbano e sobre uma escrita feminina sobre as cidades. Lembramos de figuras como João do Rio, que revelou personagens ignorados do Rio de Janeiro do início do século XX na obra A alma encantadora das ruas, e das crônicas de Machado de Assis, assim como de obras como Memórias da rua do Ouvidor de Joaquim Manuel de Macedo. Sem esquecer Antiquárias e memórias do Rio de Janeiro de Vieira Fazenda; O Rio de Janeiro do meu tempo de Luis Edmundo; Aparência do Rio de Janeiro de Gastão Cruls, entre outras interessantes obras sobre o Rio.
Porém, refletir sobre as contribuições femininas nesse contexto é essencial para uma compreensão mais crítica (e porque não mais ampla) sobre a história das cidades. Daí me recordo das crônicas de Clarice Lispector, judia de origem ucraniana que dedicou muitas linhas sobre os bairros onde morou, estudou e trabalhou. No conto "Praça Mauá", presente na coletânea A via crucis do corpo de 1974, Clarice Lispector aborda temas delicados como a sexualidade das mulheres, as dinâmicas familiares e o conceito de matrimônio, todos sob o pano de fundo de uma era marcada por intensa repressão. O cenário é a Praça Mauá, local situado na região portuária, conhecida pela antiga associação entre os cabarés, a prostituição e os trabalhadores da estiva. Clarice inicia a narrativa com uma descrição vívida: “O cabaré na Praça Mauá se chamava ‘Erótica’. E o nome de guerra de Luísa era Carla”.
Entrada do Quilombo Sacopã.
Crédito da imagem: Wikimedia.
Em outro conto, “Amor” publicado em 1960 na obra Laços de família, Clarice aborda o universo feminino quando a personagem Ana, mãe e dona de casa de uma família de classe média, retorna para casa de bonde, quando se depara como um homem cego mascando chiclete tem um epifania. O encontro leva a uma profunda reflexão interior e a questionamentos sobre sua vida cotidiana, suas escolhas e a natureza do amor. De fato, muitas vezes, os eventos mais banais ou encontros fortuitos podem nos levar a questionar nossas percepções e a realidade que nos cerca. A personagem em meio as suas reflexões, perde o ponto de descida e acaba no Jardim Botânico, onde “as árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia”.
Crédito da imagem: Kbook.
Mais recentemente, me deparei com um livro da escritora norte-americana Lauren Elkin, que mistura as suas experiências pessoais por diversas cidades que percorreu, e dialoga com outras figuras femininas icônicas da literatura como Jean Rhys, Virginia Woolf, Sophie Calle, Martha Gellhorn, George Sand, Joan Didion e Agnès Varda. O interessante é observar como a cidade pode ser compreendida como palco de uma autodescoberta e expressão feminina. Nas suas andanças por Paris, Nova Iorque, Tóquio, Veneza e Londres, a autora aborda vários temas como liberdade, visibilidade e identidade. Até o uso da expressão “flâneuse”, tradicionalmente associada à figura masculina do “flâneur” (não existe o vocábulo feminino em francês), é utilizada para uma mulher que perambula pelas cidades como uma participante ativa, que vivencia e interpreta o espaço urbano.
Crédito da imagem: Amazon.
Ao reconhecer e valorizar as “flâneuses” entre nós, reafirmamos o potencial das cidades como locais de inclusão e de diversidade, onde cada passo é um ato de descoberta e reivindicação de espaço. O deslocamento da expressão aqui colocado é um provocação para refletir sobre o direito das mulheres à cidade e sobre possibilidades de escritas femininas sobre espaços e lugares. É verdade que, para muitas mulheres, os espaços nos quais podiam circular foram restritos ao ambiente doméstico e familiar. A interação das mulheres com a cidade era (e ainda se dá de) de um outra forma. Há de se considerar aspectos importantes como raça e classe. Além disso, não podemos perder de vista que ser flâneur, um observador urbano, tão bem colocado nas obras de Charles Baudelaire e João do Rio, era um privilégio masculino de um homem burguês.
Contudo, ao percorrer as ruas nos deparamos com memórias e histórias que podem nos conectar com a “alma” da cidade com as suas ruas, vias, becos e praças. Percebo, também, como as narrativas sobre figuras consideradas historicamente marginalizadas contribuem para o entendimento sobre a complexidade do espaço urbano e para novas formas de inclusão e de representatividade. O texto é um convite ao leitor e a leitora para perceber as sutilezas da cidade que habita. Afinal, ser um cidadão ou cidadã significa ter o direito de transitar e se movimentar com segurança, de estabelecer conexões com o que é diferente e de apreciar a rica diversidade presente em nossa sociedade.
Referências:
ELKIN, Lauren. Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2016.
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Editora Rocco, 1998. Disponível em: https://metavest.com.br/livros/Amor-Clarice_Lispector.pdf Acesso em: 20 fev. 2024.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Disponível em: https://kbook.com.br/wp-content/uploads/2016/08/aviacrucisdocorpo.pdf Acesso em: 20 fev. 2024.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
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