Itajaí, 01 de fevereiro de 2023
Danilo Rodrigues *
Com o isolamento necessário para diminuir o impacto da pandemia, diversas atividades foram suspensas, entre elas as exibições de filmes nos cinemas. Mesmo passado algum tempo desde a liberação, continuei sem frequentar as salas, por diversos motivos que vão desde a comodidade do streaming a questões pessoais. Contudo, em junho de 2022 decidi ir ao cinema para a estreia do novo documentário da diretora Maria Augusta Ramos, intitulado “Amigo Secreto”. Título este que faz referência ao grupo de Telegram alvo de denúncia da “Vaza Jato”, como ficou conhecido o vazamento de conversas dele, que incluíam o então juiz federal Sérgio Moro e integrantes da Operação Lava Jato, inclusive o Procurador da República à época Deltan Dallagnol.
Hoje disponível para locação em serviços de streaming, o documentário acompanha um grupo de jornalistas desenvolvendo seu trabalho investigativo e tem como recorte temporal o início da “Vaza Jato” em junho de 2019 até a saída do editorial do El país do Brasil em dezembro de 2021. A diretora segue, utilizando ferramentas do cinema direto, o trabalho e discussões dos jornalistas Leandro Demori, do The Intercept Brasil, Carla Jimenez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, do El País Brasil.
O documentário apresenta uma narrativa densa, recheado de informações que aprofundam a discussão sobre o papel da cobertura da imprensa no decorrer da Lava Jato. Inclusive, não são raros os momentos em que fui surpreendido com a lembrança de notícias que já haviam me escapado da memória. Enfoco aqui não uma análise política da retórica do documentário ou de suas repercussões, mas como foram utilizadas imagens de telas digitais na estruturação narrativa do filme.
Ferramentas quase onipresentes na contemporaneidade, as telas digitais são um meio em que são veiculadas informações, notícias, entretenimento, imagens e também são por onde, cada vez mais, nos comunicamos. Com a necessidade de recapitular e contextualizar diversos acontecimentos – como a prisão e soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depoimentos e fases da Operação Lava Jato, julgamentos sobre a prisão com condenação em segunda instância e a anulação da condenação de Lula – a diretora opta por utilizar não somente as entrevistas com figuras diversas, como petroleiros, advogados, juristas e empresários, além das discussões dos jornalistas que o filme acompanha, mas também imagens previamente produzidas, conhecidas pelo público que acompanhou mais avidamente os acontecimentos políticos.
Dentre estes elementos, um que destoa dos outros por não ser reproduzido em nenhum momento através de uma tela é o depoimento do ex-presidente Lula no decorrer da ação penal conduzida pelo então juiz Sérgio Moro, que, assim como o depoimento de Marcelo Odebrecht, são exibidos no documentário com edição, tornando-os preto e branco e apresentando pequenas listras na horizontal, dando a impressão de terem sido coletados por uma câmera de segurança. Imagens que, via de regra, não são consultadas a não ser que algo aconteça e requeira a sua consulta, que dada a importância política do caso e suas repercussões, fez com que muitos acompanhassem e buscassem as assistir na íntegra.
Figura 1: Regiane Oliveira assistindo à votação do Ministro Alexandre do Moraes no caso que anulou as sentenças contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva em cena do filme “Amigo Secreto” (2022).
Já outras imagens são utilizadas, como expressa a figura 1, sendo reproduzidas através de uma tela. O recurso narrativo é empregado para a contextualização do assunto abordado, seja antes de entrevistas, discussões entre os jornalistas e mesmo para subsidiar as matérias que estão representadas em produção. A jornalista Regiane Oliveira assiste pelo monitor de um computador à votação do ministro Alexandre de Moraes com o notebook aberto, sugerindo a sincronicidade dos fatos com a elaboração da notícia, o que suscita a reflexão da instantaneidade e imediatismo que a sucessão de acontecimentos requer para o ofício jornalístico, que almeja o ineditismo.
Se em um contexto tido como “normal” o acompanhamento dos acontecimentos se mostra cada vez mais no meio digital em detrimento das notícias impressas, com a pandemia da COVID-19 esse cenário se intensificou. A condução do combate à pandemia faz com que pessoas acompanhem com mais interesse os desdobramentos políticos e a cobertura da mídia, que por sua vez gera uma “inflação acontecimental”. François Dosse (2013) indica, ao refletir sobre o papel da mídia na cobertura dos acontecimentos, que isso constituiria em si um aspecto enigmático, de “esfinge”, uma vez que apresenta problemas questionadores a todos os sistemas de explicação, sem, contudo, encontrar a resposta satisfatória, levando a sociedade a buscar explicações que a mídia procura desvelar.
Figura 2: Monitor multiparamétrico em cena do filme “Amigo Secreto” (2022).
Ao retratar o início da pandemia e suas repercussões políticas, a diretora opta por abrir com a cena de um monitor multiparamétrico captando os sinais vitais de um dos vários pacientes que são filmados na cena seguinte, logo após o corte, em que a câmera abre para leitos improvisados em hospitais de campanha na luta contra o vírus. A tela do aparelho, com o seus bipes ritmados e característicos, somada ao som de pessoas falando ao fundo, expressa como foi o monitoramento da vida de centenas de milhares de pessoas internadas devido a complicações no quadro da doença. Além de demonstrar, mais uma vez, a tela expressando um papel central em situações do cotidiano, mostra a atenção da sociedade monitorando diariamente o número de contaminados, internados, leitos e óbitos durante a pandemia.
Cena comum em muitas famílias de classe média, ao menos de famílias que conseguiram se manter desta forma por possuírem condições materiais e sociais, os jornalistas são filmados em isolamento com suas famílias, encarando pelas janelas a cidade, ressaltando o confinamento e o anseio das personagens pelo fim desta situação. Na cena com Leandro Demori, o jornalista está se comunicando pelo celular enquanto na televisão são transmitidas imagens de manifestações de apoiadores do governo Bolsonaro, ressaltando a virtualização da produção e acompanhamento de notícias.
“Amigo Secreto” reflete o cenário político e jornalístico do período, contando com uma densa cobertura de informações, suscitando reflexões acerca do papel da imprensa na sociedade e como a mídia, ao reproduzir acriticamente as informações do MPF, contribuiu para os abusos da Operação Lava Jato. Optei por fazer um recorte, analisando como as diversas telas são utilizadas no documentário, demonstrando a sua onipresença e instantaneidade de informações. Olhando em retrospecto, o documentário se mostra desatualizado mesmo em seu lançamento, justamente porque o intuito foi ser lançado em tempo hábil de ser apreciado antes do período eleitoral, em especial sobre as trajetórias dos amigos secretos Sergio Moro e Deltan Dallagnol, que encerram o pleito com suas eleições para o senado e a câmara de deputados pelo Paraná, o que chega a ser debatido com tom premonitório pelos jornalistas no documentário. Mas, assim como este texto, o filme é marcado por um recorte.
Referências:
AMIGO SECRETO. Direção: Maria Augusta Ramos. Produção de Christian Beetz et al. Brasil, Alemanha, Holanda: Vitrine Filmes, ZDF in association with ARTE, 2021. Disponível em: https://www.primevideo.com/detail/0FVTZ3KT6LZBPFKQA5URWEC83W/ref=atv_dl_rdr?tag=justbr2rnb-20. Acesso em: 8 de dezembro de 2022.
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador. Tradução de Constancia Morel. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
*Danilo Rodrigues é professor de história e doutorando (PPGH-UERJ).
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