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Biopirataria e resistência: a luta dos povos originários

Atualizado: 6 de jun.

Rio de Janeiro, 04 de junho de 2024.

Luciene Carris*



Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.

Ailton Krenak, Futuro Ascentral, 2022.



Em outro texto publicado para o Box Digital de Humanidades, apontei a invisibilidade histórica e o apagamento dos vestígios dos povos originários em território fluminense. Apesar disso, encontramos muitos nomes de bairros com origens indígenas, assim como a manifestação da resistência urbana em locais como a Aldeia Maracanã. Esta aldeia urbana está assentada no antigo Museu do Índio, situado na região próxima ao estádio de futebol Maracanã e à Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


Andiroba. Crédito da imagem: Wikimedia Commons.


Recentemente, a tese do Marco Temporal, aprovada em 2023, apesar de um amplo debate, incitou inúmeras polêmicas nas redes sociais, estendendo a disputa de ideias para espaços como as universidades, a grande imprensa, as esferas políticas e a sociedade como um todo. A polarização política se acirra em falas que pouco compreendem as origens dos povos originários e a sua importância para a formação da cultura e a biossegurança do nosso país, contribuindo para a disseminação de preconceitos e aversão aos povos indígenas. Além disso, a preocupação com o Marco Temporal incide na incerteza e na fragilidade da segurança dos povos originários, e no favorecimento da grilagem de terras, entre outros aspectos preocupantes.


Algumas críticas versam sobre o acesso dos povos originários à tecnologia, que supostamente os tornaria “menos indígenas”, o que estigmatiza, bem como desacredita o indígena e a sua luta por direitos. Esta é uma tese infundada, uma vez que isso não diminui a identidade indígena ou o respeito à cultura ancestral. Aliás, qual cultura não se relacionou e se relaciona em contato com tantas outras? Afinal de contas, as culturas estão em constante transformação e a incorporação (ou não) de tecnologias faz parte desse processo. Assim, a suposta ideia de uma pureza cultural é simplista e superficial. É muito comum nas reservas indígenas do Canadá e dos Estados Unidos, por exemplo, que os indígenas possuam celulares, carros e outros artifícios tecnológicos modernos, ao mesmo tempo em que mantêm suas tradições.




Crédito da imagem: SEMIL.


Políticas de tutela e de assimilação dos povos originários à cultura dominante deixaram resquícios de um passado recente, e não apenas no Brasil, sempre antagonizando os ideais de “civilização” versus “barbárie”, mascarando a violência e a imposição de uma cultura externa, ignorando as diversas formas de resistência de muitas comunidades. Depois de séculos de dizimação de grupos indígenas, no início da nossa República, os debates se centraram em torno do seu extermínio ou da sua assimilação à sociedade brasileira. Pesou a segunda opção: a adoção de uma política assimilacionista pautada nos ideais do pensamento positivista que vigorou no meio intelectual e militar por décadas.


De fato, ocorreu uma transformação nas políticas governamentais em relação aos povos indígenas. Instituições criadas como o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (1910), substituído pela Fundação Nacional do Índio (1967), refletiam uma abordagem tutelar. O Estatuto do Índio (1973) seguia a mesma lógica, entendendo os indígenas como uma categoria transitória (“incapazes”) que, ao fim, seria incorporada à comunhão nacional. A Constituição Federal de 1988, em especial os artigos 231 e 232, rompeu com a lógica de tutela, reconhecendo o direito à preservação de sua cultura, sua diversidade étnica, assim como o direito originário às terras. Aliás, a Carta Brasileira se inspirou na obra Os indígenas do Brasil: seus direitos individuais e políticos, publicada em 1912, de autoria do jurista João Mendes Junior.






Ao refletirmos sobre a questão do futuro dos povos indígenas, é imprescindível a demarcação das terras indígenas. Isso não se resume apenas à criação de leis; é necessário também a atuação e presença perene do Estado nessas demarcações, bem como a implementação efetiva de políticas públicas. A omissão estatal resulta em invasões ilegais e na exploração das terras indígenas, com queimadas e garimpos ilegais que levam à destruição da fauna e da flora, além da poluição dos rios com mercúrio, tornando a água imprópria para consumo. Um exemplo disso foi a crise humanitária dos ianomâmis na região dos estados de Roraima e do Amazonas, amplamente difundida em janeiro de 2023, um caso vil de real omissão do Estado brasileiro na região. Além da questão da saúde dos indígenas, trata-se também de um caso de segurança pública, pois muitas lideranças foram assassinadas ou ameaçadas, e a ajuda humanitária foi afetada, bem como remédios enviados foram desviados das unidades de saúde locais pelos garimpeiros.


Sem dúvida, o garimpo ilegal é uma das atividades mais devastadoras nas terras indígenas. Além disso, há o extrativismo ilegal de madeiras centenárias para o mercado internacional, realizado com máquinas que operam 24 horas por dia, abrindo enormes clareiras na floresta. Essas ações não só facilitam o garimpo ilegal, mas também promovem a agropecuária predatória, configurando condutas ilícitas segundo a legislação ambiental.



Crédito da imagem: Jornal da USP.


Outra situação crítica é a biopirataria, que consiste na apropriação de conhecimentos e recursos genéticos de comunidades de povos da floresta e originários por grupos que visam o monopólio sobre recursos naturais e conhecimentos ancestrais. O termo foi apresentado pela primeira vez em 1993 pela Organização Não-Governamental ETC Group, que identificou que grandes empresas multinacionais e instituições científicas estrangeiras estavam patenteando conhecimentos e recursos biológicos, tão bem analisada no livro Biopirataria e povos indígenas de Samia Jordy Barbieri, nas suas palavras:


Os estudos e a prática revelam as possibilidades de aproveitamento dos conhecimentos indígenas e de outras culturas tradicionais, como medicamentos, cosméticos, novos materiais orgânicos, alimentos, sementes e conservantes como produtos de mercado. A prática do mercado vem sendo a de apropriar-se desses bens culturais e devolvê-los como mercadorias protegidas por patentes, inclusive aos países onde tais conhecimentos foram desenvolvidos, geralmente ao sul do Equador (2016, p. 66).

Há inúmeros casos de patenteamento de substâncias e princípios ativos utilizando conhecimento ancestral, o que impede até mesmo a indústria nacional de pesquisar e de realizar o registro legal, causando enormes prejuízos à economia brasileira, bem como sem trazer algum tipo de retorno para as comunidades detentoras desses conhecimentos ancestrais. Um exemplo é um remédio comum para o controle da pressão arterial cujo princípio ativo é derivado do veneno da jararaca. A andiroba e copaíba, em extinção, possuem propriedades anti-inflamatórias. As sementes de cupuaçu, de alto valor comercial, foram patenteadas por uma empresa japonesa, o que levou a uma disputa internacional entre o Brasil e o Japão. O jambu, que tem propriedades anestésicas, tem sido utilizado na medicina e na estética como antirrugas. Outra situação é a própria atuação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que se vê impedida, em algumas ocasiões, de desenvolver pesquisas e realizar patentes devido à atuação prévia de empresas estrangeiras no mesmo ramo. Não precisamos ir muito longe para encontrar exemplos, já que a apropriação de recursos da flora e fauna brasileira para o exterior remonta ao período colonial.


Sistema Agroflorestal. Visão longe de sistema agroflorestal onde se vê as copas diferenciadas das fruteiras e essências florestais: açaí, andiroba, taperebá, banana, paricá, margaridão, acerola. Crédito da imagem: EMBRAPA Amazônia Oriental.



Proteger o patrimônio genético e o conhecimento ancestral dos povos originários do Brasil é crucial, pois esses povos detêm um saber único sobre a biodiversidade e os ecossistemas locais, essencial para a conservação da natureza e a sustentabilidade ambiental. Além disso, seu conhecimento sobre plantas medicinais e práticas agrícolas tradicionais contribui significativamente para a segurança alimentar e a medicina moderna. A preservação desse patrimônio cultural é fundamental para a identidade e os direitos humanos dessas comunidades, garantindo que suas tradições e modos de vida sejam respeitados e mantidos para as futuras gerações. Não podemos ignorar que a valorização da preservação do meio ambiente, da biodiversidade das nossas florestas e do patrimônio histórico e cultural indígena é essencial para o desenvolvimento nacional e para a autossustentabilidade dos povos originários, que também são prejudicados economicamente com o patenteamento de vários produtos originários.

 



Referências:

 

APIB. Riscos e violações de direitos associados à tese do Marco Temporal. Uma análise interdipliscinar a partir do direitos, da economia, da antropologia e das ciências climáticas. Disponível em: https://apiboficial.org/files/2023/06/030231b2-e186-4f7f-835b-102c614ca194.pdf Acesso em: 02 jun. 2024.

BARBIERI, Samia Roges Jordy. Biopirataria e povos indígenas. SP: Almedina, 2014.

MENDES JUNIOR, João. Os indígenas do Brasil: seus direitos individuais e políticos. São Paulo, 1912. Disponível em: http://cpisp.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Os_Indigenas_do_Brazil.pdf Acesso em: 01 jun. 2024.



*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


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