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Foto do escritorCláudio Renato Passavante

Borges, entre Homero e Gardel

Atualizado: 2 de out. de 2023

Rio de Janeiro, 01 de outubro de 2023.

Claudio Renato Passavante*



Creio que há algo essencialmente portenho em mim, para além das minhas opiniões. Devo tal convicção a um fato secreto. Ultimamente, tenho viajado muito e gostado muito de descobrir cidades, ainda que as descubra pelos olhos dos outros, porque estou cego. Mas, com certeza, todas as noites tenho sonhos muito diferentes, e nos meus sonhos sempre estou em Buenos Aires.

(Borges, aos 86 anos, pouco antes de morrer em Genebra)



Jorge Luis Borges (1899-1986) viveu os primeiros 20 anos praticamente enclausurado entre livros, dicionários, enciclopédias. Os últimos 30 foram roubados pelas trevas da cegueira hereditária e progressiva. Entre os dois exílios de fantasias e sombras, situam-se três décadas de um cidadão comum, que experimentou em Buenos Aires o mundo real das formas e das cores, mesmo enxergando mal. A cidade é cenário de seus ensaios e contos mais importantes e enigmáticos. A luz, ainda que bruxuleante, o aproximava de Gardel. As sombras o remetiam ao grego Homero, poeta cego do século VIII a.C ao qual se atribui a autoria das epopeias fundadoras da literatura ocidental, Ilíada e Odisséia.



Jorge Luís Borges. Crédito da imagem: Blog Passavante.


Borges, que em 24 de agosto completaria 110 anos, não concebia para si alternativa possível a Buenos Aires. "Se houvesse nascido em qualquer outra parte, em Yorkshire, um lugar mais lindo que este, não seria eu, mas outra pessoa." Adolfo Bioy de Casares, um dos grandes expoentes da literatura argentina do século XX, deixou um testemunho sobre o amigo antes de morrer, em 1997. "Borges temia viajar na velhice porque não queria morrer longe da cidade natal." Mesmo doente foi para a Europa, em 1985, porque não queria contrariar Maria Kodama, a última mulher, de quem dependia completamente no fim da vida. É incrível que, até hoje, o parlamento argentino discuta o repatriamento dos restos mortais do maior escritor do país, que está sepultado em Genebra e expressava o desejo veemente de, na eternidade, voltar a morar em Buenos Aires, no cemitério da Recolleta.


Por ocasião do centenário de morte de Borges, estivemos em Buenos Aires para uma reportagem especial publicada no Fim de Semana, o caderno cultural da Gazeta Mercantil. Entre queijos e vinhos, na casa de um professor de literatura argentina, apaixonado pela cultura brasileira, falávamos (como sempre) de Dorival Caymmi. Bem-humorado, o anfitrião arrematou. "Como diria Borges, quem não gosta de tango bom sujeito não é!"


No verão de 1914, Borges sentiria, pela primeira vez, nostalgia da cidade, quando o pai, o advogado Jorge Guillermo Borges, levou a família para a Europa: a mulher, a sogra e a filha de 12 anos - as três Leonores - e o menino Georgie, então com 14 anos, que, aos 7, escrevera um conto baseado em Dom Quixote e, aos 11, publicara a tradução de O príncipe feliz, de Oscar Wilde.


Pertencente à quinta geração que padecia de cegueira degenerativa na família, Jorge Guillermo viajava para consultar um oftalmologista em Genebra. Enquanto durassem os prováveis meses de tratamento, os filhos estudariam num colégio suíço. A Primeira Guerra dilatou para sete anos a estada no Velho Mundo. "Os anos que vivi na Europa são ilusórios/Estava sempre (e estarei) em Buenos Aires", resgistraria Borges, no poema Arrabal (1943).

Jorge Guillermo e o Georgie adoraram a viagem. Georgie, aliás, era o apelido de Borges, dado pela avó materna, a inglesa Fanny Haslam de Borges, que morreu aos 93 anos, também cega, sem ter querido aprender a falar espanhol. As três Leonores, enjoadas, recolheram-se ao camarote. Quando o navio aportou no Rio de Janeiro, Georgie ficou observando a cidade, que considerou encantadora. De repente, fixou o olhar em outro garoto, que declamava um poema popular, que Borges se recordaria com emoção na velhice. "Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam/não gorjeiam como lá". O final do poema de Antônio Gonçalves Dias (1825-1864) provocaria lágrimas no pré-adolescente argentino. "Não permita Deus que eu morra/sem que volte para lá."

O episódio é contado por Maria Esther Vàzquez na biografia Jorge Luis Borges - Esplendor e Derrota (publicada no Brasil pela editora Record). Ela compara os destinos do portenho Borges e do maranhense Gonçalves Dias. Filho mestiço de um comerciante português e de uma cafuza, Dias estudou na Universidade de Coimbra, em Portugal. Voltou ao Brasil, mas, tuberculoso, foi obrigado a retornar à Europa. Ao perceber que não teria salvação, o poeta e dramaturgo brasileiro, aos 39 anos, quis morrer onde nascera. O navio que o trazia de volta naufragou perto da costa do Maranhão. "Borges também não teve sorte", diz Maria Esther. "Doente, morreu longe da cidade que tanto amara."


Borges gostava de percorrer sua cidade em longas caminhadas. Em El Tamaño de Mi Esperanza (1926), enfatiza que "é preciso encontrar-lhe a poesia, a música, a pintura, a religião e a metafísica que se coadunam com tamanha grandeza." Errante do centro e dos bairros pobres, considerava a cidade um labirinto de linhas retas e paralelas. "Buenos Aires é profunda e nunca, na desilusão ou no penar, me abandonei às suas ruas sem receber inesperado consolo." Já consagrado, divertia-se com o assédio dos fãs. "Eles me consideram um velho poeta cego, um Homero local."

Eterno candidato ao Prêmio Nobel, caminhava um dia qualquer de 1980 escorado pelo amigo Roberto Alifano pelo setor bancário da rua San Martín, quando, da boleia de um caminhão, um homem, entusiamado, berrou a plenos pulmões: "Borges e Maradona para todo mundo!" O escritor gargalhou. "Caramba! Vá gritar assim em Estocolmo; quem sabe não conseguiria convencer a Academia Sueca?" Conta a lenda que Borges, já cego, com o apoio da bengala, ao atravessar a avenida 9 de Julio, a mais larga do mundo, com 144 metros de pista, sentiu uma pressão em um dos braços. Alguém o acompanhava na longa travessia até a calçada oposta, onde Borges ficou surpreso ao ouvir a voz comovida. "Agradeço por ter guiado este cego."

Crédito da Imagem: Blog Passavante.



Para Borges, o momento mais importante da vida "foi a volta de minha primeira viagem à Europa, em 1921." A partir de então, o escritor pôs-se a esquadrinhar Buenos Aires, principalmente os subúrbios das rinhas de galo, dos pampas, dos cuchilleros e compadritos, desordeiros que defendiam a honra na ponta do punhal. Dessa investigação, surgiram livros de poesia, como Fervor de Buenos Aires (1923), Luna de enfrente (1925) e Cuaderno San Martin (1929), além dos ensaios Inquisiciones (1925), El Tamaño de Mi Esperanza (1926) e Evaristo Carriego (1930).


Na Europa, Borges esteve envolvido com o ultraísmo (movimento de vanguarda). Em Buenos Aires, desenvolveu o que chamava de criollismo. Gostava do tango original, prostibulário, e chegou a menosprezar o sentimental Carlos Gardel (1890-1935), mas voltaria atrás. "Tenho notado que, em geral, os canalhas são sentimentais. Está comprovado no tango, música canalha e sentimental ao mesmo tempo."


Borges compôs letras de milongas musicadas por Astor Piazzola. Desprezava sistematicamente o bairro La Boca, onde fica o Caminito, uma das ruas mais conhecidas do mundo, com conventillos coloridos. Era talvez o único sítio popular que evitava, apesar de considerá-lo interessante. Colonizada por imigrantes genovezes, La Boca, às margens do rio Riachuelo, seria, para Borges, "menos argentino" que outros bairros do sul. Para o mexicano Carlos Fuentes, "o primeiro narrador totalmente centrado na cidade é Borges." Quando dirigiu a Biblioteca Nacional (1955-1973), Borges, completamente cego, não podia desfrutar do paraíso de 900 mil livros ao alcance das mãos. Ocupava-se então em brincar com um globo terrestre; fazendo-o girar, punha o dedo num ponto e torcia. "Tomara que seja em Buenos Aires." Diante do eventual insucesso, reagia: "Não se pode ter tudo na vida."


OUÇAM EL TANGO, COM POEMA DE JORGE LUIS BORGES:



*Claudio Renato Passavante é jornalista. Texto originalmente publicado em 2009 no Blog Passavantecr.


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