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Buarques de Hollanda, os meninos da Rua Buri - Segundo Capítulo

Foto do escritor: Cláudio Renato PassavanteCláudio Renato Passavante

Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 2025.

Cláudio Renato Passavante*


O historiador Sérgio Buarque de Hollanda odiava ser interrompido enquanto lia os jornais. E foi em um desses momentos de concentração que, certa vez, um ladrão resolveu invadir a casa da família na Rua Buri 35, no Pacaembu, São Paulo. Ao ouvir o barulho importuno, Sérgio, sem tirar os olhos das notícias, vociferou improprérios. O ladrão, assustado, entrou no quarto da babá Benedita. Só deu para afanar um aparelho de televisão. Passou por um dos meninos, que o cumprimentou, pensando ser o técnico. Eis que no portão surgiu a super Maria Amélia, que, com um saco de compras, gritou, pôs o homem para correr e salvou a televisão. Ainda absorto nas leituras, Sérgio resmungou, xingou e ficou muito tempo sem compreender o que ocorrera. Quem conta o episódio, às gargalhadas, é a primogênita dos Buarques de Hollanda, Heloísa Helena, a Miúcha, 72 anos.


"Papai trabalhava com a porta aberta e enlouquecia quando a casa era invadida pela molecada que queria jogar pingue-pongue e pebolim (totó)", conta a mãe de Bebel Gilberto. O casarão da Rua Buri era uma zona franca. Houve ali festas que reuniram 500 pessoas e até comércio ambulante na porta. Vinícius de Moraes participava de todos os rega-bofes.


Mulher altiva, que recusa ajuda até para carregar pacotes de compra em supermercados, a centenária Maria Amélia jamais abandanou a fé religiosa, nem mesmo pelo marido, irreverente e ateu. Miúcha, aliás, adora falar sobre a união aparentemente improvável de Memélia e Papioto. "Papai era um intelectual boêmio; e mamãe, católica, de uma família mineira tradicional de Ubá." Eles se conheceram no carnaval de 1934, embalados pelos sambas e marchinhas de Noel Rosa e Braguinha, em frente à sede do Jockey Club do Rio. Foram apresentados por Afonso Arinos de Mello Franco, primo-irmão de Maria Amélia e amigo de Sérgio. Para Miúcha, "não fosse a admiração e a organização de minha mãe, papai não teria escrito Raízes do Brasil." A própria Memélia confirma que, "para bancar a noiva boazinha, datilografava o que Sérgio escrevia à mão."


Crédito: PassavanteCR Blog.

A casa de 600 metros quadrados na Rua Buri, construída em 1929, foi a primeira que a família conseguiu comprar (a prestações). Sérgio e Maria Amélia recebiam nela os amigos Vinícius de Moraes, Antônio Candido, Caio Prado Jr, Manuel Bandeira, Prudente de Moraes Neto, Carybé, Jorge Amado, Paulo Vanzolini, Florestan Fernandes, Clóvis Graciano, Dorival Caymmi, Fernando Sabino e tantos outros que aportavam em São Paulo. Miúcha conta que Sérgio cantava samba em latim e tango em alemão, tocava berrante e sanfona, vestia-se de Nero em bailes a fantasia e, numa ocasião, andou com uma galinha verde sob o braço para sacanear os integralistas. Ana de Hollanda, a Baía, de 61 anos, sexta filha, pede, entretanto, cuidado com a imaginação fértil da irmã mais velha. "Papai detestava pegar em bichos."


Sérgio conheceu no Café Nice, no Rio, Pixinguinha, Donga, Aracy de Almeida e Ismael Silva. "No tempo em que João Gilberto era casado com Miúcha, fiz visitas cordiais à família, em São Paulo, e me encantei com a simplicidade, o despojamento e a ausência de vaidade em dona Maria Amélia", contou-nos Dorival Caymmi, em outubro de 2000. Na época da Rua Buri, Memélia já se notabilizava pelos dotes culinários. O doce de coco "amarelo Van Gogh" foi imortalizado por Fernando Sabino na crônica "Um pouco de doçura." Outras especialidades na cozinha eram vatapá e bobó de camarão.


O biólogo e compositor Paulo Vanzolini, 85 anos, lembra dos saraus na casa do Serjão, quando Maria Amélia, ao pé do piano, cantava músicas de Ismael Silva, e participava de todas as conversas sobre o destino do Brasil. "Ela não é uma pessoa de esquerda, apenas uma mulher de bom caráter e uma das pessoas de quem mais gosto na vida."


O casarão dos Buarques de Hollanda em São Paulo foi de festa na era de ouro, mas, também, de resistência, nos anos de chumbo. Nos períodos negros da ditadura, a casa da rua Buri se transformava em "aparelho." Sérgio pedira aposentadoria da universidade, a USP, em solidaridade a Florestan Fernandes e outros professores afastados. O telefone da família foi grampeado. Maria Améia conhecia as senhas. "Fulano no hospital" significava prisão de alguém. Nos confrontos de estudantes com a polícia na rua Maria Antônia, em São Paulo, levava comida para a meninada. E ajudava os proscritos, como o deputado cassado Márcio Moreira Alves, cujo discurso anódino contra os militares fora, em 1968, o pretexto para a decretação do AI-5, que restringiria todas as liberdades constitucionais dos cidadãos brasileiros.


Crédito da imagem: PassavanteCR Blog.

Maria Amélia é uma católica esclarecida, que frequenta a igreja São Paulo Apóstolo, em Copacabana, bairro carioca onde mora. A simpatia contagia a vizinhança. Alfredo Jacinto Mello, o Alfredinho, de 66 anos, proprietário do botequim Bip Bip, é fã de carteirinha. "Memélia é a mãe e a avó que todos gostaríamos de ter; uma ativista da esquerda católica que jamais se entrega à depressão", conta Alfredo, que frequenta a mesma igreja da mãe de Chico. Além do Bip Bip, Maria Amélia, sempre que pode, faz uma propaganda subliminar do Carioca da Gema, uma das principais casas de espetáculo da Lapa, no centro do Rio, administrada por um dos sobrinhos, Carlos Thiago Cesário Alvim.


Filha do desembargador mineiro Francisco de Cesário Alvim e da paulista Maria do Carmo da Costa Carvalho, Maria Amélia nasceu em 25 de janeiro de 1910 - no mesmo ano de Noel Rosa, da passagem do cometa Harley e da Revolta da Chibata, na qual marinheiros se amotinaram contra a semiescravidão imposta pelos oficiais da Armada aos subalternos e quase bombardearam toda a cidade. Ela veio à luz no elegante bairro do Cosme Velho, no Rio. É a mais velha de dez irmãos. O avô paterno, José de Cesário Alvim, foi o primeiro presidente de Minas Gerais e o materno, Álvaro de Carvalho, senador e ministro. Quando Memélia tinha 6 anos, a família mudou-se para Copacabana. A menina estudou no Sacré Couer de Marie. Depois, fez curso de enfermagem. Aprendeu a falar francês, italiano e inglês. Para a educação dos filhos, exigiu colégios excelentes: o Des Oiseaux, o Santa Cruz e o Caetano de Campos.


Socialista de corpo e alma, Maria Amélia procura distribuir o afeto equitativamente por cada filho, neto, bisneto ou amigo. "Sucesso é palavra de consumo externo e o importante é o amor que sentimos por cada um deles, não que saiam ou deixem de sair na imprensa. Até porque o amor de verdade dificilmente é publicado nas páginas dos jornais."No próximo e último capítulo: a carioquice radical de Memélia, que, praticamente, obrigava os filhos e netos a "falar chiado"; o depoimento de Mário Lago, de Antônio Candido e de todos os filhos; a reação da matriarca ao envolvimento de Chico Buarque com grupos de extrema direita que originariam a TFP e à prisão dele, por furto de carro em São Paulo, antes de se tornar o compositor mais competente e querido do Brasil.



Cenas do filme "Raízes do Brasil". Disponível em: Tarcisioantoniolopes YT.


Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).


Obs.: Texto originalmente publicado no dia 19/11/2009 no blog PassavanteCR, reproduzido no Box Digital de Humanidades como homenagem à Maria Amélia Buarque de Hollanda, a matriarca da família Buarque de Hollanda, que nasceu no dia 25 de janeiro.


*Cláudio Renato Passavante é repórter, editor e produtor (15 prêmios de Jornalismo, dois Esso), produz e edita o programa de Miriam Leitão, na GloboNews há 12 anos Trabalha na Rede Globo desde 2002.  


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