Toronto, 02 de outubro de 2022.
André Sena*
Há dois momentos radicalmente diferentes na história brasileira, onde os processos eleitorais sempre chamaram a atenção de historiadores e cientistas políticos em geral. O primeiro deles ocorreu em um momento de intensa fragilidade política e institucional do país, onde um jovem Imperador acabava de ser coroado em um processo arquitetado de forma delicada e astuta por conservadores brasileiros, donos de uma incontornável capacidade de articulação por entre as diversas facções políticas que se formaram com a crise do Primeiro Reinado e com a Regência, estendendo-se por toda década de 30 do século XIX.
Crédito da imagem: Desciclopedia.
Os Clubes da Maioridade chegaram inclusive a mobilizar o que se podia chamar naqueles tempos de “debate público” na direção de Pedro II, com a penetração frequente de lideraças liberais que buscavam desarticular o governo do último Regente do Império, Pedro de Araújo Lima, cujo gênio político genuinamente conservador antecipou cada movimento de seus oponentes, e compreendeu que os tempos regenciais precisavam acabar, muito antes do que a Constituição de 1824 previa. Araujo Lima julgava com uma objetividade política de fazer inveja, que era preciso criar freios e contrapesos para que as oligarquias econômicas não fossem mais capazes de criar projetos políticos facciosos, que acabassem por indeterminar o papel das elites que de fato controlavam as instituições de poder brasileiras.
A Monarquia brasileira nunca trabalhou pelo fim das oligarquias, sabedora de sua importância enquanto base econômica e até mesmo política do Império. Mas fez o que pode para domesticá-las, até que as consequências oriundas das forças sociais que encaminhavam a agenda da Abolição se tornaram de fato incontroláveis, e mandaram o Trono pelos ares em 1889.
O resultado desse jogo de atropelos entre liberais e conservadores, com a parada ganha pelos segundos em 1840, refletiu-se no comportamento das clivagens políticas em todas as eleições que ocorreram no início do Segundo Reinado. Marcadas pelo embate levado às últimas consequências, entraram para o jargão histórico brasileiro como “eleições do cacete”, nome que fez jus aos episódios de pancadaria que marcaram aqueles anos, entre a coroação e as revoltas liberais subsequentes, entre 1842 e 1848, não apenas na Corte do Rio de Janeiro, mas em diversas províncias do Império.
Luzias (liberais) e Saquaremas (conservadores) se engalfinharam envolvendo a própria Coroa Imperial nos imbróglios, com o apontamento emergencial de parlamentares, propostas de dissolução do Ministério dos Irmãos (nome pejorativo dado ao Ministério da Maioridade, formado com a ascensão do Imperador ao Trono do Brasil) e muita, muita porradaria para garantir as maiorias da “esquerda liberal” nas Câmaras, especialmente na capital imperial, que já naqueles tempos via a formação de milícias políticas e facções violentas, que ficaram conhecidas como os papos amarelos, em função de um lenço amarelo que ostentavam no pescoço. Onde surgiam, a chapa esquentava e salvava-se quem podia se salvar, até que se garantissem “eleições limpas”, ou seja, garantidoras da vitória liberal, debaixo de muita fraude, alteração de resultados e votos até mesmo de crianças.
Não é de agora que as eleições brasileiras são marcadas por momentos de tensão, violência e instabilidade. O fantasma que assola esse momento eleitoral pelo qual passa o Brasil tem seus ancestrais, que datam de épocas em que o país ainda se formava.
O segundo momento que se nos apresenta como um interessante diagnóstico histórico eleitoral brasileiro pode ser percebido já no Brasil republicano, igualmente em um momento de crise, agora das próprias oligarquias que as elites imperiais buscaram no passado adocicar. A Primeira República, acidamente denominada como Velha após a Revolução de 1930, foi atravessada por uma prática recorrente em seus momentos eleitorais, que conhecemos como “o voto do cabresto”, cuja imagem consolida a reputação autoritária que a vida republicana brasileira experimentou ao longo de quase todo século XX, e da qual parecemos ainda não estarmos inteiramente alforriados.
As oligarquias nordestinas foram as campeãs dessa prática em nossas primeiras décadas republicanas, mas não possuem o privilégio de serem as únicas. Aparecem na historiografia clássica da Primeira República desta forma, em função das características violentas e berrantes de uma outra prática política que viabilizou (e não me parece ter desaparecido por inteiro, apenas se sofisticado!) o cabresto eleitoral: o coronelismo.
As regiões do sudeste e do sul do país, que promoveriam sob Vargas o primeiro surto industrial brasileiro, nem foram imunes ao coronelismo (embora o tivessem concebido em matizes menores) e muito menos ao voto do cabresto. A rede clientelista e fisiológica da República do Café com Leite e das oligarquias do Sul praticaram o cabresto despudoradamente. Esse processo que se estendeu especialmente nessas regiões, mais ou menos coronelescas, ainda hoje se refletem no mosaico político, e especialmente no jogral parlamentar brasileiro.
Atribui-se certa fala ao paulista de Macaé, apelido de campanha eleitoral dado a Washington Luís, último presidente da República velha; trata-se de uma dessas falas proféticas que entram para o folclore político com o passar dos anos, sem sabermos se de fato foram ou não ditas. Mas nada impede nesses tempos bizarros da vida brasileira, que ouçamos o último presidente que governou o Brasil naqueles anos de crise (nada mais redundante!). Disse o velho, ao descer as escadarias do Catete, deposto pelos gaúchos em 1930: “as eleições no Brasil sempre foram desonestas, mas os homens eleitos honestos. Agora teremos eleições honestas, mas os homens...”
A fala do paulista de Macaé pode ter se originado no ressentimento diante do calor dos acontecimentos. Presidentes quando se sentem acuados são capazes de tudo: de tiro no peito a bravatas de golpe. Enquanto isso, vamos nos amadurecendo enquanto povo, indo as urnas, e experimentando esse velho novo hábito, essencialmente democrático, supostamente produtivo, e incontestavelmente necessário: votar sem cacete, e sem cabresto, quando isto nos for possível.
REFERÊNCIAS:
LYNCH, Christian Cyryl. Da Monarquia a Oligarquia: história institucional e Pensamento Político brasileiro. (1822-1930). Ed. Alameda, 2014.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem e o Teatro das Sombras. Ed. Civilização Brasileira, 2003.
OLIVEIRA, Lucia Lippi de. A Questão Nacional da Primeira República. Editora Brasiliense, 1990.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do Patronato Político Brasileiro. Ed. Biblioteca Azul, 2012.
*André Sena é historiador (UERJ).