Rio de Janeiro, 24 de maio de 2024.
João Carlos Nara Jr.*
A Hierarquia dos Sepultamentos
Os cemitérios são cidades póstumas que transcendem o tempo, refletindo a desigualdade que marcou a existência de seus habitantes. A cidadania do aquém se revela nas pompas e nas classificações dos sepultamentos, enquanto a cidadania do além iguala a todos, grandes e pequenos, superiores e inferiores. A história do sepultamento dos africanos escravizados no Rio de Janeiro colonial, especialmente nos Cemitérios dos Pretos Novos, é um testemunho dessa complexa relação entre vida, morte e desigualdade.
A inumação dos africanos escravizados revelava uma hierarquia significativa. Aqueles que tinham fé católica e eram batizados tinham direito a sepulturas eclesiásticas, enquanto os não batizados eram enterrados em campos-santos. Associar-se a uma irmandade leiga significava ingressar em uma rede de sociabilidade que garantia maior reconhecimento social e um enterro mais digno. A generosidade dos patrões poderia proporcionar um sepultamento ad sanctos, próximo a imagens de santos de devoção ou ao altar-mor, simbolizando um status elevado mesmo na morte.
Thomas Ender – Pfarre Sa. Rita in der Rua dos Pescadores [Santa Rita na travessa dos Pescadores], 1817. Fonte: AKADEMIE DER BILDENDEN KÜNSTE. Thomas Ender, no 13.660, grafite e aquarela, 37,5 x 51,0 cm, numerada 695 (FERREZ, 2000, v. 1, item 0671).
Os Pretos Novos e a Criação de um Campo-Santo na Freguesia de Santa Rita
A situação dos pretos novos, africanos recém-chegados que faleciam antes de serem totalmente integrados à sociedade colonial, era particularmente precária. Eles eram considerados indigentes sem domicílio e, portanto, não pertenciam a nenhuma paróquia. A responsabilidade por seus sepultamentos recaía sobre a Santa Casa de Misericórdia ou outras agremiações pias. A necessidade da criação de um campo-santo específico para os pretos novos levou à intervenção do Estado português em 1722. A freguesia de Santa Rita, criada em 1751, assumiu tal encargo, primeiro cuidando dos enterros no adro da matriz e no Largo de Santa Rita, depois arrendando um terreno no Valongo em 1774, para servir de cemitério. Mas, ao que parece, antes de ser matriz, a capela de Santa Rita já atendia a tal necessidade desde 1741.
A Irmandade de São Domingos, formada por crioulos, gentio da Guiné e pretos de Angola, também colaborou com os sepultamentos a partir de 1758. A insistência da Câmara para retirar o comércio para fora da cidade e a transferência dos cemitérios para o Valongo refletiam a tentativa de ordenar a expansão urbana. No entanto, a prática desumana de lançar corpos em pântanos ou locais inadequados persistiu por um bom tempo, apesar da repressão policial.
O Fim do Tráfico Transatlântico e a Memória dos Cemitérios
Com a previsão de extinção do comércio transatlântico de escravos, o Cemitério do Valongo deixou de ser necessário. A última vítima anônima do tráfico oficial foi enterrada em 1830, e a memória do cemitério começou a desaparecer com a construção de residências sobre ele. Foi um processo de esquecimento semelhante ao do Cemitério de Santa Rita, que tinha se iniciado com a sua desativação em 1774.
Em 2018, as prospecções arqueológicas para a implantação da Linha 3 do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) no Largo de Santa Rita trouxeram à luz fragmentos ósseos de nove adolescentes africanos. A descoberta despertou a atenção para a importância do local e a necessidade de preservar a memória dos pretos novos. No entanto, a decisão de não remover os restos mortais antes das obras, por solicitação da Comissão Pequena África, levantou graves questões sobre como se deve preservar e valorizar o patrimônio sensível.
A história dos cemitérios dos pretos novos no Rio de Janeiro colonial é uma lição para as futuras gerações. Ela nos lembra da importância de reconhecer e preservar a memória dos que nos antecederam, mas também nos alerta sobre as complexas questões de justiça social e representação histórica. Afinal, a cidadania de dois mundos, do aquém e do além, continua a refletir as desigualdades e os desafios da nossa sociedade.
Fronteiras da Escravidão
A Editora do Senado Federal publica o livro Fronteiras da Escravidão: da África ao Cemitério de Pretos Novos de Santa Rita no Rio de Janeiro. A obra reverencia a memória dos africanos que morreram durante a vinda forçada ao Brasil antes de serem vendidos e foram enterrados no cemitério do Largo de Santa Rita, zona central do Rio de Janeiro, que funcionou até 1774. A história dos “pretos novos”, expressão que designa os recém-chegados trazidos pelo tráfico negreiro, é contada de forma transdisciplinar, integrando questões historiográficas, arqueológicas, geográficas, urbanas, filosóficas, teológicas e políticas. O texto assume Santa Rita como um “des-lugar” que se mostra um proveitoso campo de estudo das fronteiras – étnicas, territoriais e outras que houver –, abrangendo diversos aspectos interdisciplinares ao contar a história dos pretos novos, desde suas origens na África até sua chegada ao Brasil.
Referências:
NARA JR., João Carlos. Fronteiras da Escravidão. FREGUESIA DE SANTA RITA DO RIO DE JANEIRO. Disponível em: https://santarita.hypotheses.org/3689 Acesso em: 23 mai. 2024.
______. Fronteiras da Escravidão: Da África ao Cemitério de Pretos Novos de Santa Rita no Rio de Janeiro. Brasília: Ed. Senado Federal, 2024. Adquira o livro aqui: Livraria do Senado.
*João Carlos Nara Jr. é Arquiteto e Urbanista (UFF), doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Arqueologia (Museu Nacional/UFRJ) e licenciado em História (UniRio). Assessor de Patrimônio Cultural do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Foi coordenador-geral do Projeto Resgate de documentação histórica Barão do Rio Branco entre 2020 e 2022. Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (IHGRJ) e Diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Humanidades Digitais (ABHD). Coordena, desde 2022, o projeto "Identificação e exposição dos documentos históricos relativos ao processo de Independência do Brasil", financiado pela FAPERJ.
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