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Foto do escritorCarlos Eduardo Pinto de Pinto

Como conheci Djalma Limongi Batista

Rio de Janeiro, 01 de agosto de 2023

Carlos Eduardo Pinto de Pinto*


1986. Eu tinha nove anos e era fã de Dona beija, sucesso da TV Manchete que tinha alçado Maitê Proença ao estrelato off-Globo. Uma vizinha mais velha – 15 anos? –, descobriu um filme em cartaz com a atriz e conseguiu autorização de nossos pais para irmos sós ao cinema. Não atino porque adultos supostamente responsáveis (nossos pais) e os funcionários da sala permitiram isso. Coisas dos anos 80...


O filme era Brasa adormecida, homenagem de Djalma Limongi Batista a Brasa dormida (Humberto Mauro, 1928). Isso recuperei a posteriori: na época, era só o “filme da Maitê”. O enredo (spoilers!) se passa nos anos 1950, numa fazenda agitada pelos preparativos do casório de Bebel (Maitê Proença), filha única de uma família endinheirada. A moça está dividida entre o noivo Tony (Paulo César Grande) e Ticão (Edson Celulari), um primo interiorano. Escolhe Ticão, deixando Tony desesperado e o obrigando a também declarar seu amor pelo primo. No fim, há um beijo entre os galãs, apenas subentendido. Eu e a vizinha mal nos olhávamos – o que fazer com aquele filme esquisitão? Alerto que este final é aquele que uma criança de nove anos viu e não aquele que o filme apresenta: o erotismo da sequência é muito discreto, por motivos que apresento mais adiante. Contudo, quando me recordo da experiência, o beijo está lá, reverberando. A memória tem vocação para roteirista.



Maitê Proença como Bebel, protagonista de Brasa adormecida. Disponível em: http://expirados.blogspot.com/2016/05/dvd-filme-brasa-adormecida-1987.html. Acesso em: 28 jul. 2023.


Uma década depois, cinéfilo e tendo escolhido o cinema brasileiro como objeto de pesquisa, assisti a Bocage – o triunfo do amor (1997), também de Djalma. Dessa vez, fui capturado pelo erotismo de cada fotograma: exibindo-se em nus frontais, o ator Victor Wagner seduz mulheres e homens em cenário e edição barrocos, coerentes com a poesia de Bocage. Com a perspectiva de um adulto e com mais recursos para pesquisa, fui em busca de dados sobre aquele diretor que havia marcado minha infância e descobri um pioneiro:


Djalma surgiu no universo cinematográfico escancarando seus próprios desejos no premiado curta Um clássico, dois em casa, nenhum jogo fora, de 1968. Não se trata apenas do pioneiro registro da produção da Escola de Comunicações e Artes da USP, mas também do primeiro filme nacional a abordar a homossexualidade com seriedade e respeito. Foi assim que, a partir de então, o jovem cineasta construiu sua carreira: recortando sua autoimagem em película fílmica. (Nadale, 2005, p. 7)

Essa descoberta me permitiu reavaliar Brasa adormecida. Compreendi que a “esquisitice” do Djalma correspondia a uma estética queer – caracterizada pela fuga de padrões heteronormativo –, então rara na cinematografia do país. Apesar de manter velada a homossexualidade dos protagonistas, a narrativa explora corpos masculinos numa chave diversa do cinema mainstream, afeito a fetichizar as mulheres. Embora reverencie a beleza de Maitê, filmada como diva – outro traço queer –, o filme dedica longas sequências às silhuetas masculinas, como uma em que o corpo de Ticão é adorado por homens e mulheres à beira de uma piscina. A despeito disso, Djalma lamenta ter sido discreto em relação à paixão entre os rapazes. Sob o impacto das primeiras notícias sobre a AIDS, apresentada então como a “peste gay”, o diretor teve receio de ser estigmatizado:


Hoje, evidentemente, me arrependo muito desta decisão firmada pelo pavor. [...] Calil havia me perguntado se eu queria me tornar o cineasta gay brasileiro. E acho que, depois de Asa Branca, estava, sim, preparado para agarrar o título com unhas e dentes. Mas a AIDS fez com que eu me retraísse completamente. Tomei uma atitude muito brasileira: fechei as comportas. Ao contrário, por exemplo, do espanhol Pedro Almodóvar, que encarou o touro de frente e foi com tudo. Por isso que sempre digo que Almodóvar concretizou aquilo que toda a minha geração perdida dos anos 80 gostaria de ter feito. Adoro os filmes de Almodóvar. (Nadale, 2005, p. 144)

Os filmes de Djalma talvez não agradem ao grande público porque, seja tentando ser contido, como em Brasa adormecida, ou exercendo sua liberdade criativa como em Um clássico, dois em casa, nenhum jogo fora, Asa Branca e Bocage – o triunfo do amor, ele nunca poderia ser considerado um cineasta convencional. É uma obra sui generis, no sentido radical da expressão: única em seu gênero. Brasa adormecida e Asa Branca estão disponíveis no YouTube.


Esse texto é uma versão ampliada de um post realizado a convite de Samantha Viz Quadrat para o Instagram do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi-UFF).


Referência


NADALE, Marcel. Djalma Limonge Batista: livre pensador/por Marcel Nadale. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005.


Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor de história (UERJ)


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