Toronto, 15 de julho de 2022.
André sena*
O Partido Comunista Brasileiro comemora neste ano de 2022 o centenário de sua fundação, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Pouco se fala nisso, embora não se possa negar a importância histórica desta efeméride, sejamos ou não adeptos de seus princípios. A fundação do PCB é um marco inalienável da história política brasileira, especialmente no processo de refinamento institucional do movimento operário no país. Naturalmente existem processos inerentes a própria história da classe operária brasileira que antecedem a 1922, como o funcionamento do Bloco Operário Camponês, por exemplo, e até mesmo os movimentos abolicionistas que sacudiram o Brasil imperial a partir de 1870. Podemos ainda dizer que a história do proletariado brasileiro ultrapassa o “Partidão”, é maior do que ele, e tem elementos que lhe escapam, e muito.
Crédito: depositphotos.fr
Tudo verdade. Entretanto a reunião de intelectuais, cientistas, artistas e ativistas políticos, que no mesmo ano da Semana de Arte Moderna deram ao Brasil um partido de orientação comunista, marcava com efeito, a necessidade de atualização e modernização da luta política brasileira, (especialmente em sua dimensão político-partidária) em uma jovem e recente República, que não havia chegado ainda aos seus 50 anos de proclamação. Ao centenário da independência do Brasil e aos estetas da paulicéia desvairada, somou-se a chegada de um pequeno, embora intrépido grupo de formuladores de ideias políticas, que de forma turbulenta e instável marcariam a vida republicana brasileira dali em diante, tanto em seus tempos democráticos, quanto nos degenerados.
Astrojildo Pereira Duarte Silva é uma figura central neste processo de fundação, e conhecer mais de perto alguns detalhes de sua biografia intelectual pode nos ajudar a compreender melhor a importância deste centenário do qual tratamos aqui. Afinal, foi um dos mais importantes intelectuais comunistas de todos os tempos, Georgi Plekhanov (sobre quem dei um curso na UERJ em 2010 para os alunos da graduação em Filosofia), que nos chamou atenção em “O Papel dos Indivíduos na História”, para a importância das marcas pessoais nos processos históricos e nas construções sociais e coletivas.
Não falo aqui nem em individualismo, nem em coletivismo, mas naquilo que o autor russo destaca como a capacidade de personalidades individuais imprimirem, até onde isso lhes é possível, sua assinatura na dialética histórica, em um ritmo poderoso entre a parte e o todo, entre suas próprias individualidades e a coletividade onde se inserem. Astrojildo Pereira, insisto, pode e deve ser conhecido por nós a partir deste esquema analítico de Plekhanov. É, portanto, em bom tempo que a editora Boitempo publicou suas obras completas em 4 volumes, seguida de um estudo biográfico, elaborado pelo historiador Martin Cezar Feijó.
É no período Entre-Guerras (1919-1939) que Astrojildo discute a presença no Brasil de uma polarização política, muito presente nas camadas médias urbanas do país, que ecoava o que se passava então na Europa, que via nas ruas a atuação de alguns movimentos sociais que defendiam ideias em torno do comunismo e outros tantos em torno do fascismo. Como diria o grande analista internacional, diplomata e historiador Edward H. Carr, eram aqueles, tanto anos de crença como de crise. Na obra URSS, Itália, Brasil, publicada em 1935, o fundador do PCB chama a nossa atenção para os paradoxos econômicos e sociais brasileiros, bem como a relação entre esses e a economia internacional. Senão vejamos:
Em suma, a realidade brasileira é a da exploração econômica e da opressão política em que vivem as classes laboriosas, operários da indústria e da lavoura, colonos e pequenos lavradores, artesãos e intelectuais pobres, todos sem exceção jungidos ao capitalismo estrangeiro — ou diretamente nas empresas imperialistas, ou indiretamente por intermédio do capitalismo “nacional”. Realidade axiomática, que dispensa demonstração, porque é sentida e sofrida por 99,9% da população brasileira. Realidade-mater, de cujos flancos nascem todas as realidades de um país riquíssimo habitado por uma gente pobríssima. (PEREIRA, 1935.)
Lembrando um gênero historiográfico que hoje comumente chamamos de prosopografia, Astrojildo Pereira nos deixou Formação do PCB: 1922-1928, uma história detalhada da fundação do partido que ajudou a criar, somando à metodologia prosopográfica sua própria experiência pessoal, marcada pelos anos de vida partidária, especialmente em seus primeiros seis anos, período de gestação da própria organização, e que antecedeu o momento posterior, onde o intelectual teve de enfrentar um processo de expulsão do PCB e elaborar uma rigorosa autocrítica, feita com uma boa dose de coragem e honestidade.
Já em Crítica Impura, publicado em 1963, dois anos antes de sua morte, Astrojildo nos oferece uma interessante combinação de diversas perspectivas metodológicas para a crítica literária, analisando nomes incontornáveis do universo luso-brasileiro como Machado de Assis e Eça de Queiroz, ao mesmo tempo em que produz uma crítica da própria crítica, abordando autores como José Veríssimo, que antes dele já era considerado uma autoridade na hermenêutica machadiana. Tudo isso somado a um tom narrativo memorialístico, onde Astrojildo busca compreender as relações indissociáveis entre política e cultura, especialmente a partir de observações que fez em viagens pela China na década de 1950.
Sua militância política, iniciada aos 19 anos de idade no Centro de Resistência Operária em Niterói, nunca deixou de fazer parte da maneira pela qual expõe suas ideias sobre os temas em questão, mesmo quando utilizava, ainda jovem, pseudônimos como Alexa Pavel, na confecção de folhetos que analisavam a situação revolucionária na Rússia, imediatamente posterior a chegada dos bolsheviques ao poder em 1917. Tratava-se, portanto, de um intelectual engajado no sentido mais sartriano possível do termo.
Crítica Impura parece em alguma medida retomar ideias alinhavadas em uma obra anterior do autor, Interpretações, publicada em 1944, onde uma minuciosa análise literária aparece, especialmente pela abordagem de autores brasileiros como Manuel Antonio de Almeida e Lima Barreto, além de uma riquíssima arqueologia literária da cidade do Rio de Janeiro, tão conhecida de Astrojildo, embora não fosse carioca de nascimento. Muitas vezes são os outsiders que melhor saboreiam a terra que adotam. É ainda nesta obra que encontramos uma discussão do velho intelectual comunista sobre os debates abolicionistas no século XIX e de sua importância para a formação histórica e social brasileira.
O centenário da fundação do Partido Comunista Brasileiro em 2022 não poderia nos ofertar uma ocasião melhor para revisitarmos seus escritos, especialmente quem de forma genuína se interesse pela produção intelectual brasileira bem como pela sua utilização desta mesma produção para a compreensão mais ampla e enriquecida de nossa trajetória como povo e como país, tarefa que me parece cada vez maus urgente, senão emergencial.
A obra intelectual e política de Astrojildo Pereira pode contribuir em muito, para um intuito desta natureza.
REFERÊNCIAS:
CPDOC. Astrojildo Pereira Duarte Silva. Verbete. Fundação Getúlio Vargas.
DUARTE SILVA. Astrojildo Pereira. URSS, Itália, Brasil. Boitempo Editorial, 2022.
______________________________ A Formação do PCB. 1922-1928. Notas e Documentos. Idem.
______________________________ Interpretações. Idem.
______________________________ Crítica Impura. Idem
CARR, Edward H. Vinte Anos de Crise. (1919-1939). Uma Introdução ao Estudo das Relaçoes Internacionais. Ed. FUNAG, 2002.
FEIJÓ, Martin Cezar, AUGUSTO, Sergio (cont.), MARINGONI, Gilberto. (cont.). O revolucionário cordial. Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. Boitempo Editorial, 2022.
*André Sena é historiador (UERJ).
Comments