Toronto, 01 de dezembro de 2021.
André Sena*
Meu texto desta quinzena teria como tema o diabo-coxo, personagem tão importante quanto pouco visível da intelectualidade brasileira. Signatário da Constituição republicana de 1891, o diabo-coxo seria mais uma contribuição minha para o Box Digital de Humanidades, que vem atualizando quinzenalmente suas publicações, com uma missão tão nobre quanto urgente: contribuir para os debates de história pública, na esteira de outras iniciativas que nos antecederam.
Crédito da imagem: Marek Sarba.
A parte que me cabe neste breve latifúndio de ideias foi eu mesmo que escolhi: decidi, desde o início do projeto que perseguiria em meus textos, elementos do pensamento brasileiro da primeira metade do século passado, mentes brilhantes às quais eu queria fazer uma breve visita de 1000 palavras, produzindo no máximo seis minutos de leitura. Acredito que o que gerou em mim a vontade de delimitar meus textos em torno desse tema foi a obra irrecusável do tão brilhante quanto polêmico crítico de nossa cultura, Wilson Martins, autor de uma obra de sete volumes chamada História da Inteligência Brasileira, que busca repertoriar nossa intelectualidade desde 1550 até os tempos contemporâneos.
A intrepidez de Wilson Martins sempre me causou espanto e admiração. Admirado nas principais universidades dos Estados Unidos, especialmente em Nova Iorque, onde lecionou e pesquisou por anos, trata-se de alguém ignorado por grande parte dos brasileiros, conhecido apenas daquelas torres de marfim que caracterizam ainda nossos espaços de saber, insulares e tropicais.
Não deu. Coloquei o diabo-coxo de lado e decidi abrir as veias. Tenho visto coisas demais, e tenho me imposto certo silêncio obsequioso, beirando o cinismo recluso daqueles que preferem apenas vislumbrar castelos suspensos no ar, para usar uma imagem do cada vez mais atual filósofo americano, Henry David Thoreau, um dos pais do transcendentalismo, em Walden.
A metáfora cazuziana dos heróis que morreram de overdose e dos inimigos no poder, que embalou as festas do grand monde dos últimos anos da década de 1980, nunca se mostrou tão vívida diante dos meus olhos, que as vezes marejam, saudosos do Brasil.
Muitos amigos queridos que tenho são, como eu, historiadores e professores. Tenho acompanhado com preocupação e estarrecimento o esmagamento e crise emocional que eles atravessam desde 2019. Uma das mentes mais trabalhadoras que conheço, historiadora de talento e professora de uma grande universidade federal, teve de afastar-se de seu ofício e hoje encontra-se sob intervenção psiquiátrica e medicamentosa. Outra grande pesquisadora de História, foi atingida por uma terrível depressão, acompanhada de um processo crescente e clínico de melancolia. Há ainda outro amigo, igualmente historiador de talento, genial e muito produtivo, em situação igualmente semelhante. São três exemplos, mas há muito mais gente com quem me relaciono, em quadros psíquicos ainda piorados.
Todos dizem a mesma coisa: o Brasil atual está irrespirável, sufocante e assustadoramente opressor. Os espaços de reflexão foram reduzidos a pó, e há uma massa crescente, tão inatingível quanto carente de ser educada em uma cultura verdadeiramente republicana e democrática. Essa asfixia se torna ainda mais cruel com os debates travados nas redes sociais, que nós intelectuais, muito preconceituosamente sempre insistimos em desvalorizar até o momento em que fora tarde demais.
Embora viva longe do Brasil, em um assumido caso de autoexílio, eu sinto dessas terras geladas o peso que meus amigos, educadores, historiadores e boa gente de letras estão passando. Também sou atingido por isso, porque saí do Brasil, mas o Brasil não saiu e nem sairá de mim. Todas as vezes que abraço ou beijo meu marido me pergunto (todas as vezes mesmo!) o que isso tem de errado. Me sinto pesado, observado, julgado por uma significativa parte daqueles a quem não posso deixar de chamar de ‘o meu povo’.
Faz alguns dias que venho fazendo algo pouco recomendável, especialmente por alguns especialistas, defensores do chamado minimalismo digital, e que vem apontando para o perigo das redes sociais, assim como para a transformação de nossa atenção celular em uma poderosa moeda virtual: tenho olhado, as vezes por horas, os vídeos brasileiros disponíveis no Instagram. De dois dias para cá tenho tido imensas dificuldades para dormir, e estou certo de que a causa está nisso.
Vi um padre famoso defender a excomunhão como mecanismo de purificação da Igreja Católica, açambarcada pela heresia no Brasil. Vi um pastor, considerado por muitos uma figura engraçada no meio neopentecostal brasileiro, comentar o trecho da criação da mulher, descrito no Velho Testamento, como uma traquinagem divina para punir o homem. Vi ainda uma dessas pastoras integristas mineiras e juvenis criticando a afirmação “meu corpo minhas regras”, como sendo uma armadilha do diabo a penetrar o seio da Igreja Evangélica. Pedra de Tropeço. Vi ainda um jovem e charmosíssimo padre afirmar, que o tema da venda de indulgências, discutido em sala de aula pelos professores de história, ao abordarem o tema da Reforma Protestante, se dá de forma enviesada, ideológica e má intencionada. Era um vídeo sobre a necessidade das indulgências parciais e plenárias para mitigar o nosso natural trajeto rumo ao purgatório nos dias de hoje.
Finalmente, vi um jantar de 40 parlamentares para saudar e enaltecer a sabatina de um juiz indicado para o STF no Senado Federal, definido como terrivelmente evangélico, em um ambiente marcado por lágrimas súbitas da primeira-dama da República. Soube também, pelas redes sociais da possibilidade de formação para 2022, da chapa da situação, tendo como candidato à Vice-Presidência do Brasil o pastor e inimigo público da comunidade LGBTQIA, Silas Malafaia. Além disso, vi uma criança sendo “entrevistada” por uma adulta, que comemorava ter conseguido impedir com a ajuda de outros amiguinhos, a abertura de um banheiro não-binário em sua escola, o que para ele seria o primeiro passo na direção da implantação da “gramática neutra” por lá.
Todos esses vídeos vinham acompanhados de plateias imensas mergulhadas no aplauso, no endosso e na euforia. Ver isso foi mais terrível para mim do que o conteúdo dos vídeos em si, e finalmente compreendi o que meus amigos estão passando no Brasil e eu mesmo por aqui, ainda que mais distante dessa realidade do que eles. Testemunhar isso nos provoca uma incurável dor e frustração, na medida em que nos sentimos literalmente impotentes apara alterar o quadro em que nossa gente se meteu. Nossos inimigos não estão apenas no poder; são poderosos demais para serem removidos de lá, o que levaria anos, se possível fosse, e eu aposto que não é.
Uma professora minha me disse certa vez que estávamos nos tornando “um arremedo de república”. Na ocasião ri, e hoje me sinto impossibilitado de discordar. Este meu texto não fará sucesso, terá poucas visualizações, porque, diferente dos outros que já publiquei por aqui, vem distanciado de fantasia e de entusiasmo histórico. O que vivemos é grave e infelizmente irremediável, de modos que me desculpo aos leitores pelo desabafo. Era isso, ou parar de escrever definitivamente para o Box.
O diabo-coxo, que vale a pena ser discutido, ficará, quem sabe, para mais adiante.
André Sena é historiador (UERJ).
Referências:
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. Ed. UEPG, 2010.
THOREAU, Henry David. Walden or Life in the Woods. ApeVerlag, 2010.
WOOD, Ellen Meiksins. Em defesa da História. Marxismo e Pós-Modernismo. Zahar, 1999.
LEVY, Bernard-Henri. Elogio dos Intelectuais. Rocco, s.d.
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