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Foto do escritorJorge Luís Rocha

Elixir Constituinte: Remédio Democrático

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2022.

Jorge Luís Rocha*


Ocultado pelas comemorações do bicentenário da Independência, uma pequena preciosidade se vai no esquecimento… Para minimizar este equívoco, ofereço este texto com algum humor e muita inquietação.


No dia 22 de setembro de 1988 foi aprovada, pela Assembleia Nacional Constituinte, a atual Constituição brasileira. Chamada também de “Constituição Cidadã”, foi promulgada no dia cinco do mês seguinte. Lá se vão 34 anos…


Para quem não se ligou, se trata da lei mais importante. Aquela que organiza o Estado e estabelece a separação entre os poderes legislativo, executivo e judiciário. Impõe limites ao poder do governo e enumera os deveres e direitos de cada um.


Por isso mesmo, foi apelidada “Cidadã”: por ter estabelecido diversos direitos considerados fundamentais, como a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e os que estão relacionados ao trabalho, à previdência, à educação, saúde e assistência social.


E, antes que se comece a resmungar, por se achar que o assunto é chato, deste pinço na memória digital a imagem de um Ulysses Guimarães (1916-1992) frasista, algo decadente mas particularmente inspirado neste dia: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” Lembrança importante em tempos golpistas, de saudosistas de paus-de-arara e choques elétricos que gostariam de ver aplicados aos que pensam e são diferentes. Valentões repugnantes que insistem em sobreviver na política e no cotidiano brasileiros.


As constituições já foram “faca amolada” nas mãos burguesas. Projetos políticos afiados a decepar cabeças coroadas de uma Europa monarquista, absolutista – ainda que os chamemos de déspotas esclarecidos (Para quem? Sobre o quê?). De uma nobreza teimosa que insistia em viver uma “matrix” dessincronizada com os novos tempos racionalistas e de acumulação de capital. Sem déjà-vu!


Assim como muito elixires famosos que foram produzidos no país, como o Elixir de Nogueira, o Elixir de Inhame Goulart, Dória ou Paregórico, que vendiam promessas, curas milagrosas para vários males, as constituições também prometem muito; mas podem iludir. Em nosso país, chegou como um biombo a excluir homens e mulheres pobres e livres da sociedade civil e garantir a reprodução da escravidão. E continuou na sua trilha de exclusão dos mais pobres durante várias versões – quando não apoiou claramente ditaduras diversas.





Chuva de papel picado em plenário após a aprovação do texto

e o anúncio do fim dos trabalhos da Constituinte.



A de 1988 – sétima até agora –, apesar de inovadora, incorporou como “herança maldita” – mas não enfrentada corajosamente – o espírito jurídico do movimento golpista de 1964. A “Redentora” caprichou na centralização despudorada do Executivo, na sombra tutelante das Forças Armadas, nas medidas provisórias de relevância e urgência questionáveis. Para não falar na manutenção do modelo econômico consagrado pelo período que Ulysses, então presidente da Assembleia Constituinte, quis repudiar em seu célebre discurso – lembrado no início deste texto.


As 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas em apoio, não esconderam os problemas de um processo de redemocratização forçado e incompleto – sintetizado pelo célebre slogan: “abertura lenta, gradual e segura”. Apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo caminho burocrático das subcomissões até a reta final do endosso – via tão ao gosto da nossa cultura de papelórios – não afastaram o cheiro de goma das fardas e fatiotas bem-talhadas.


Qualquer coisa que não fosse o atendimento dos interesses políticos e econômicos imediatistas e a perpetuação dos poderosos foi afastada como veleidades sem maior importância – nem um “muito obrigado”. Como o anteprojeto de Constituição elaborado por uma comissão de notáveis, chamada de Arinos, como se o nome do seu idealizador e presidente pudesse espanar o caráter elitista. A sugestão de adoção de um regime parlamentarista e a redução do mandato presidencial ofenderam a susceptibilidade dos ocupantes do Palácio do Planalto e nem sequer foram enviadas à Constituinte. Os balcões desta farmácia já estavam ocupados por outros rótulos, mais pomposos. Os elixires, tão populares na primeira metade do século XX, haviam quase desaparecido.





Eleições foram convocadas ainda sob a égide da legislação autoritária e resultou na escolha de apenas 26 mulheres entre as 559 possibilidades. Índios? LGBTQIA+? Os tempos eram outros… Tempos em que alguns ainda acreditavam que Nutrion era o “melhor Remédio contra Fraqueza, a Magreza, a Debilidade, os Exgottamentos physicos e cerebraes”… Para uma democracia recém-saída dos porões de uma ditadura nefasta, como “creanças Fracas, Pallidas e Rachiticas”, uma bebida confortadora, feita no bálsamo da participação política de segmentos importantes da sociedade brasileira, foi especial.


O hoje tão malfalado Centrão, se fez presente aos trabalhos constituintes. Nascido “Centro Democrático” – ops! - reunia parlamentares do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, hoje simplesmente MDB), do Partido da Frente Liberal (PFL, depois Democratas e, por fim, União Brasil), do Partido Democrático Social (PDS, hoje Partido Progressista Reformado), do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e outras legendas – tão menores em número de membros quanto de retidão programática. Partidos que, entretanto, formavam a base do governo do “imortal” José Sarney.


Cargos e verbas públicos, concessões de meios de comunicação; o que fosse necessário para aliciar os constituintes foi oferecido. Como o ópio que compunha famoso elixir do passado – apreendido e proibido pela Anvisa não tem tanto tempo assim. Não foi por acaso que, após vinte meses de árduo trabalho, questões como a da reforma agrária não foram respondidas de forma clara.


Nos trabalhos também se fizeram sentir as pressões do empresariado, insatisfeito com a aprovação de direitos sociais para os trabalhadores; dos militares, magoados com a perda visível de prestígio; e do próprio governo – encurralado pela crise econômica e social da “década perdida” e os conflitos políticos ligados a falta de legitimidade do mandatário. Coisas de quem recebe a presidência pelos caprichosos do destino e a teimosia do escolhido original.


Além disso, não nos esqueçamos que as decisões mais importantes estavam nas mãos de uma elite parlamentar, que controlava a negociação das matérias e a organização das agendas de trabalho. Um colégio que pouca relação tinha com seus congêneres conficionais e congregou lideranças prestigiosas – algumas presunçosas. O que não impediu o impasse os grupos de pressão e interesses. Redes de TV e rádio foram usadas, pelos grupos em conflito, para externar suas contrariedades. Um país em suspenso. Alguém lembra?


Nestas mais de três décadas, tendo em vista o momento em que vivemos, a Constituinte de 1987-1988 merece reflexões mais consistentes sobre os limites de nossa democracia. No entanto, como nos rótulos dos elixires, a memória acabou envolvida por belas imagens que não criam o desejo de explorar as bulas mas o de seguir promessas – muitas vezes enganosas. Para compreender os erros e acertos da nossa Constituição é preciso recuperar de forma crítica a história do processo de sua escrita. A efeméride é uma boa oportunidade.



Referências:

BUENO, Eduardo; TAITELBAUM, Paula. Vendendo saúde: a história da propaganda de medicamentos no Brasil. Brasília: Agência de Vigilância Sanitária, 2008.

FERNANDES, Florestan. A Constituição como projeto político. Tempo Social. Revista de Sociologia. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1 (1): 47-56, 2.º sem. 1989.

NOGUEIRA, André M. Assembleia nacional constituinte de 1987-88. Verbete. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-nacional-constituinte-de-1987-88>. Acesso em: 27 set. 2022.



*Jorge Luís Rocha é Professor e historiador. Possui pós-doutorado e doutorado pela UERJ, mestrado pela UFF e especialização pelo Museu Histórico. É professor na FFP, da UERJ, em São Gonçalo, e instrutor , e instrutor da Escola de Administração do TJRJ.

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