Toronto, 18 de dezembro de 2022.
André Sena*
Há milhares de razões possíveis para se escrever um ensaio sobre Stefan Zweig. A escolha do Brasil como país final de acolhida, o fascínio que a cultura brasileira exerceu sobre ele e sua obra, levando-o inclusive a escrever o célebre livro Brasil, País do Futuro; o misterioso e ao mesmo tempo absolutamente plausível suicídio que ele e sua esposa Lotte cometeram em Petrópolis em 1942. Ou simplesmente o fato de Zweig ser um grande e mundialmente celebrado escritor, considerado por muitos, dentre os quais este que escreve estas linhas, um gênio da literatura universal. Aliás, universalidade sempre combinou com o geist zweigiano, pois por diversas vezes Stefan Zweig se declarara em entrevistas um grande cosmopolita, um weltbürger, um defensor da cidadania mundial.
Crédito da imagem: The New Yorker.
Mas não. O motivo que me levou a escolha deste personagem de nossa história literária foi talvez o mais simplório de todos: estamos na época da festa judaica de Chanuká, e penso ser escrever sobre Zweig, uma maneira elegante de homenagear aquela que considero a minha festa judaica predileta, e que também conhecemos como a Festa das Luzes.
Paradoxalmente, Chanuká é uma festa que celebra algo de profundamente anti-cosmopolita, essencialmente identitário e, portanto, ironicamente nada zweigiano. A Festa das Luzes tem como pano de fundo a vitória dos judeus, liderados por uma família, que entrou para a história como os Macabeus, contra os selêucidas (greco-sírios), que desejavam helenizar, tornando mais cosmopolita e universal (ao menos naquilo que os helenistas entendiam ser essa universalidade...) a região que hoje compreende a Síria, o Líbano, Israel e a Palestina. Venceu o essencialismo e a identidade judaica, diante do poderio dos elefantes de Nicanor e dos devaneios de um rei que tinha o hábito de endeusar a si próprio, chamado Antíoco.
Mesmo assim, o nome de Stefan Zweig faz jus a esse momento festivo que dezembro sempre nos traz com a Festa das Luzes. Zweig experimentou o cosmopolitismo dos estertores do Império Austro-Húngaro, sobre o que escreveu em uma preciosa autobiografia, considerada por muitos uma das melhores análises históricas dos últimos anos do poderio dos Habsburgos na Europa, O Mundo de Ontem, lançado no mesmo ano de sua trágica morte, em Petrópolis, em 1942.
A percepção universalista que este grande autor possuía já se refletia na tese de doutorado que defendeu ainda em 1904 na Universidade de Viena, A Filosofia de Hippolyte Taine, onde analisou profundamente a vida e obra do historiador francês que foi a principal influência sobre o movimento naturalista na França, bem como um dos primeiros, senão o principal nome de uma historiografia radicalmente marcada pelo positivismo, que posteriormente chamaríamos de realismo histórico ou simplesmente de historicismo, depois que obra de um outro historiador, Friedrich Meinecke, Die Entstehung der Historismus, consagrou este termo em 1936.
Stefan Zweig dedicou-se intensamente a análises históricas importantes, especialmente a partir de nomes da literatura como Honoré de Balzac, Charles Dickens e Fyodor Dostoievsky, sobre quem escreve em um texto de grande beleza estilística, conhecido como Os Três Mestres, aparecido em 1920. Ali, Zweig apresentava uma visão muito particular sobre aqueles que considerava os três maiores escritores do século XIX. Em Os Três Mestres, Zweig ressaltava a obsessão balzaquiana pela concepção de seus personagens, que levaram o autor a valorar mais a fantasia da sua própria literatura do que realidade real de sua vida, uma espécie de Napoleão literário. Aponta ainda Dickens como um retrato fiel da cultura vitoriana de seu tempo, e o autor de Crime e Castigo como aquele que melhor soube utilizar suas próprias angústias para revelar ao mundo as profundas contradições da alma humana.
Biógrafo de mão cheia, Zweig nos presenteou com uma rica biografia de duas rainhas europeias, Marias de séculos diversos, e que tiveram ambas, seus pescoços ceifados pelos poderosos de seus tempos: a Stuart, dos escoceses e a Antonieta, dos franceses, enragés do século XVIII. Em Maria Antonieta. Retrato de uma Mulher Mediana (Marie Antoinette. Bildnis eines mittleren Charakters), Stefan Zweig buscou compreender historicamente a vida da rainha guilhotinada (também ela uma austríaca), a partir de uma análise sensível e emocional de seus círculos de sociabilidade mais íntimos, produzindo uma narrativa ao mesmo tempo novelesca e histórica, muito antes do boom dos romances históricos que conhecemos hoje. Basta lermos análise desta obra de Zweig, feita pelo crítico literário Sidney B. Fay, treze anos depois de sua publicação: “Com a imaginação de um poeta, a pena habilidosa de um ensaísta e a autoconfiança de um psiquiatra, ele produziu uma imagem extremamente vívida e interessante de uma das figuras mais trágicas de toda a história.”.
Entretanto, o cosmopolitismo e o universalismo de Stefan Zweig não o livraram daquilo que ele era profundamente, algo que eu e ele, de maneiras rigorosamente diferentes, compartilhamos: era judeu, um traço de sua identidade humana suficientemente particular para que o nazi-fascismo o identificasse e perseguisse. O todo nunca supera inteiramente a parte, redefinindo-a. Ao contrário: na sinédoque da vida, nossas particularidades são formidavelmente eloquentes e frequentemente perigosas; Zweig teve de fugir em 1934, um ano depois da asenção de Adolf Hitler ao poder, da Áustria para a Inglaterra.
Nos preparativos da Operação Leão Marinho, nome dado ao plano de invasão e conquista das ilhas britânicas pelos nazistas, os alemães confeccionaram uma lista de pessoas a serem imediatamente presas assim que a Inglaterra caísse. O nome Stefan Zweig constava na página 231 da listagem, com seu endereço completo em Londres. Não havia outra saída, a no ser fugir mais uma vez: primeiro para Nova Iorque e depois definitivamente para o Rio de Janeiro, onde se instalaria até a morte, com Lotte Altmann, sua esposa, cujas mãos segurava quando ambos foram encontrados mortos na casa de Petrópolis, que hoje é o Centro Cultural Stefan Zweig.
Justificando o suicídio em carta ao amigo e poeta francês Jules Romain, Zweig desafabara sobre seu estado depressivo, diante dos rumos para os quais se encaminhava a humanidade sob barbárie fascista: “Penso ser melhor concluir em tempo útil e de cabeça erguida uma vida em que o trabalho intelectual significava a mais pura alegria, a liberdade humana, e o maior bem desta Terra.”
E assim perdemos para sempre um dos maiores gênios do século XX, que viveu como pode entre a parte e o todo, apostando todas as suas fichas naquilo que tínhamos de mais comum e indvisível: nossa univerdalidade. Chanuká sempre me lembrará deste paradoxo que está na esteira da morte de Stefan Zweig. Morre-se de pé, mas inteiro, e com uma estranha e retrógrada esperança, de que se já fomos melhores antes, podemos, quem sabe, tornarmos a sê-lo.
REFERÊNCIAS:
DINES, Alberto. Morte no Paraíso. A tragédia de Stefan Zweig. Ed. Rocco, 2013.
ZWEIG, Stefan. Autobriografia. O Mundo de Ontem. Ed. Zahar, 2014.
_____________ Maria Antonieta. Retrato de uma mulher comum. Ed. Zahar, 2013.
_____________ O Mundo Insone. E outros ensaios. Ed. Zahar, 2013.
CAREY, Leo. The Escape Artist. Death and Life of Stefan Zweig. The New Yorker, August 27, 2012. The Escape Artist | The New Yorker
*André Sena é historiador (UERJ).
Interessante e ao mesmo tempo curiosa a percepção do meu amigo-irmão André Sena sobre o judeu, humanista, pacifista e crítico do nazi-fascismo, Stefan Zweig, que teve seus livros proibidos e queimados em praça pública. Nestes diais atuais, sombrios e preocupantes para a humanidade, creio que o Sena nos leva, através deste brilhante artigo, a uma oportuna reflexão.