Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 2022.
Carlos Eduardo Pinto de Pinto*
No centro da imagem, a miniatura de uma estátua equestre. Uma voz feminina reflete em alemão sobre o que faz uma pessoa desejar ser eternizada em pedra ou bronze no meio de uma praça. A seguir, um homem explica a seu filho, uma criança loira de olhos claros, que aquela escultura é Napoleão Bonaparte, a quem admira pela bravura. Contudo, ressalva que mesmo um guerreiro com muitas batalhas vencidas pode ter medo. Sugere ao garoto que, se um dia se sentir amedrontado, peça auxílio a alguém.
Cauã Reymond (Dom Pedro I) e Emílio Eduardo (futuro Dom Pedro II) em cena do filme A viagem de Pedro de Laís Bodanzky (2021) disponível em: encurtador.com.br/doxQY
Estas são as cenas iniciais de A viagem de Pedro, dirigido por Laís Bodanzky. Embora estivesse pronto há mais tempo, sendo exibido em festivais, o filme – atualmente no catálogo da Globoplay –, estreou oficialmente nas salas de cinema do Brasil na semana do 7 de setembro de 2022, sendo inserido nas comemorações do Bicentenário da Independência. Este assunto já foi endereçado no Box Digital de Humanidades sob diversas óticas, nos textos O coração na Independência, de Luzimar Soares, Reflexões sobre um bicentenário, de Luciene Carris, 2 sambas e 1 bicentenário: as histórias do Brasil e o que fazer com ele?, de Mário Brum, e Por que comemorar a Independência?, de Elizeu Santiago. Aqui, enfoco o modo como a roteirista e diretora “desenhou” o personagem histórico em sua narrativa e o contexto de lançamento da obra, que coincidiu com o polêmico translado do coração de Dom Pedro I do Porto para Brasília.
O objetivo da operação diplomática foi render homenagens e honrarias ao órgão embalsamado, “objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil”, conforme informou Alan Coelho de Séllos, ministro-chefe do cerimonial do Itamaraty, em declaração ao G1 (2022, online). Além das críticas direcionadas aos elevados gastos dispendidos pelo governo Bolsonaro em um contexto de crise econômica, o ritual também foi alvo de comentários que denunciavam seu caráter elitista, ao reforçar a ideia de que a Independência teria sido conquistada exclusivamente por um homem branco por meio de um gesto apaixonado e bélico.
Também foi denunciada a semelhança com o cerimonial que trouxe os restos mortais de Dom Pedro I para o Brasil, como parte da celebração ufanista do Sesquicentenário levada a cabo pela ditadura civil-militar. O local escolhido para abrigar os despojos mortais em 1972 foi o Monumento do Ipiranga, construído cinquenta anos antes para celebrar o Centenário da Independência. As características estéticas desta obra, aliás, fornecem algumas pistas sobre o modo como se concebia a Independência nos dois contextos (1922 e 1972). Os conjuntos escultóricos favorecem uma versão coletiva da Independência, mas, mesmo assim, privilegiam homens brancos, na maioria pertencentes às camadas mais altas da sociedade. Ainda, uma das faces do conjunto reproduz o quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, tela pertencente ao acervo do Museu da Independência, onde está o monumento. No quadro, o protagonismo de Dom Pedro é reforçado, de modo a “arrematar” as ações pregressas, tomadas como preparação para o fato instaurado pelo príncipe e futuro imperador.
Reprodução do quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, parte do acervo do Museu do Ipiranga. Disponível em: encurtador.com.br/cuCF7
Pelas características descritas acima, é fácil notar que os eventos diplomáticos envolvendo o coração de Dom Pedro em 2022 reforçam a monumentalização da personagem histórica, alimentando a intenção de lhe associar a valores – bravura, impetuosidade, senso de liberdade –, perpetuados com o auxílio de imagens e ritos.
Uma vez explicado os sentidos assumidos pelo “coração” do título deste ensaio, seria esperado que o associasse à espada empunhada por Dom Pedro I na imagem reproduzida acima. Contudo, não é esta a espada que desejo abordar, mas aquela que é explorada metaforicamente pelo filme de Laís Bodanzky. As cenas de abertura, resumidamente descritas acima, nos preparam para um percurso narrativo que explora um momento de crise na biografia do então ex-imperador do Brasil, quando decide abdicar do trono brasileiro e voltar para a Europa com a intenção de garantir o trono português para sua filha mais velha, Dona Maria da Glória. A viagem do título é justamente aquela empreendida a bordo de uma fragata inglesa rumo a um futuro incerto – suas ações no Brasil seriam suficientes para garantir uma estátua em praça pública? Ou ainda precisaria travar mais batalhas para assegurar seu brilho perante a posteridade?
Uma das escolhas mais criativas do roteiro é relacionar essa crise política com a disfunção erétil enfrentada por Dom Pedro ao longo da viagem. Desse modo, o filme parte das conexões simbólicas entre pênis/virilidade e espada/agressividade, resumidas didaticamente em uma cena em que, após ser examinado por um médico, o protagonista questiona com irritação: “Como é que eu vou ganhar uma guerra de pau mole?”. O pênis ereto pode ser intercambiado com a espada em riste, que garantiria a vitória e a boa fama, como no quadro de Pedro Américo. Ironicamente, na estátua equestre de Dom Pedro I na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro – instalada em meados do reinado de seu filho – o imperador não empunha uma espada, mas a Carta Constitucional de 1824. Ainda assim, o braço está erguido.
Há outros recursos do roteiro para tematizar a fragilidade de Dom Pedro. Os seus relacionamentos afetivos também são abordados – tanto no presente, quanto em flashbacks –, momentos em que a centralidade do falo e a imposição agressiva da socialmente construída autoridade masculina são parcialmente reavaliadas pelo protagonista. Do mesmo modo, o desmoronamento de sua majestade é simbolicamente construído pelo contraste com o restante da tripulação do navio, majoritariamente negra. Por um lado, percebe-se o quanto aqueles homens e mulheres parecem indiferentes a sua presença. Por outro, há momentos em que a autoridade exercida por alguns desses personagens se impõe, subjugando a vontade do ex-imperador. Em ambos os casos, sua presença é rebaixada à condição de apenas “mais um” entre os tripulantes. Talvez por isso o título do filme não o trate por “Dom”, o que reforçaria a ideia de domínio.
Não me interessa aqui fazer o cotejamento da obra com os debates historiográficos, uma vez que a proposta da película não é ser fiel ao passado, mas confrontá-lo. Busca seguir um trajeto especulativo em que o personagem histórico se debate diante da possibilidade de não ter sua carne eternizada em pedra, de não ser transformado em vulto. Pela perspectiva de Marcos Napolitano (2011, p. 68), um filme pode contribuir para “a monumentalização ou, seu contrário, a desconstrução dos monumentos historiográficos através da ‘escrita fílmica da história’”. Por meio das operações narrativas descritas aqui, defendo que A viagem de Pedro busca justamente despir o ex-imperador de sua pompa, lhe destituindo a potência da espada. Qual é a eficácia de sua estratégia? Essa seria matéria para outro texto...
Referências:
A VIAGEM DE PEDRO. Direção: Laís Bodanzky. Produção de Laís Bodanzky et al. Brasil, Portugal: Vitrine Filmes, 2021. Disponível em: https://globoplay.globo.com/. Acesso em: 30 nov. 2022.
HONORATO, Raquel; MARQUES, Cristina. Coração de Dom Pedro I chega ao Brasil e é esperado “como se o imperador estivesse vivo”, diz Itamaraty. Distrito Federal, G1, 22 ago. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/08/22/coracao-de-dom-pedro-i-chega-ao-brasil-e-e-esperado-como-se-imperador-estivesse-vivo-diz-itamaraty.ghtml. Acesso em: 30 nov. 2022.
NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, Maria Helena et al. (org.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2011.
*Carlos Eduardo Pinto de Pinto é professor de História (UERJ).
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