Guarulhos, 15 de março de 2023.
Luzimar Soares *
A sociedade brasileira passa, hoje, por uma reforma educacional. Muito se foi discutido e se fala sobre a importância de determinadas matérias, e a carga horária de cada uma delas. Invariavelmente, aparecem os defensores de um ensino mais tecnicista, voltado para o mercado de trabalho. Não raro, discursos a favor da exclusão de estudos como: História, Sociologia, Antropologia, Geografia e / ou qualquer matéria considerada “mais de humanas” surgem em colocações nas mídias.
Crédito da imagem: WIX.
Atualmente, a humanidade vive a crescente onda de negacionismo, de contestação histórica de crenças já superadas, como a da Terra plana, que, hoje, vem aglutinando um “exército” de pessoas que comungam dessa crença, dentre tantos outros negacionismos que estão em voga. Neste balaio, está a descrença em muitos medicamentos, especialmente a vacina, mais especificamente, a que é utilizada contra a pandemia da Covid-19.
É bem verdade que a questão do negacionismo não é exatamente uma novidade nas relações da humanidade. Talvez esse movimento seja inerente ao ser humano, afinal, negar o outro é querer impor a sua própria verdade. De acordo com Andréa Maria Carneiro Lobo (2017, p. 67), o astrônomo Galileu Galilei sofreu uma série de perseguições, sanções e privações. Em suas palavras:
Em 1632, Galileu foi acusado pelo Santo Ofício por crimes contra a Igreja. Condenado pelo tribunal em 1633, foi obrigado negar suas concepções e assinar uma carta de abjuração para não ser queimado como herege. Sua pena foi substituída pelo confinamento perpetuo em sua casa.
Crédito da imagem: Galileu Galilei, retratado por Justus Surterman, 1640.
Disponível em: Royal Museum Greenwich
Obviamente, o vivido atualmente tem outras implicações e consequências, todavia, citar esse fato é importante para elucubrar acerca das negações, bem como sobre o papel dos historiadores e da importância da História. Da mesma maneira, compreender o que é a pós-verdade, conceito que suporta as negações, e que, para Elika Takimoto (2021, p. 100), desconecta-se da verdade, uma vez que não há interesse em dialogar para compreender a verdade, pois, esta já está dada.
A veracidade inerente a determinada narrativa não precisa ser provada no contexto da pós-verdade, ou seja, a pós-verdade não se anula com a verdade. Não lhes interessa discutir qual a verdade ou o que, de fato, aconteceu. Não se trata de comparar narrativas, porque um discurso verdadeiro não é condição suficiente para alterar o compromisso afetivo.
Pautando-se nessas discussões tão atuais, e nas negativas de quadros já cientificamente comprovados, falar sobre a importância da disciplina de História na escola para o público estudantil, quanto mais cedo for, maior será a possibilidade de desconstruir essa pós-verdade e, assim, discutir narrativas pautadas por vestígios e fontes históricas, e não achismos. Portanto, acredito que este é um tema, além de atual, de extrema relevância para a educação.
Em se tratando de ensino nacional, durante muito tempo, o ensino de História foi determinado pelo estado e seguiu a linha de contar a história dos grandes homens, dos grandes feitos. Desta maneira, populações inteiras foram apagadas, silenciadas, negligenciadas e até negadas, seguindo normativas que determinavam as diretrizes voltadas, apenas, para uma continuidade de uma suposta eugenia.
Seguindo as diretrizes e normativas ditadas pelo poder federal, a História criou uma espécie de fidelização das pessoas aos personagens do poder, ou seja, durante um longo período, os estudantes foram obrigados a decorar nomes de personalidades, seus feitos e datas, fatos que, sim, são históricos; todavia, apresentados como verdade absoluta e de forma unilateral. Assim, o vencedor contava a História e o povo era obrigado a aceitar.
Em um dos momentos mais obscuros da História nacional, em outras palavras, o período da ditadura civil-militar, além do já relatado acima, sequer era permitido questionar a História e os acontecimentos contemporâneos. Àqueles que ousavam contradizer o sistema, era reservada a prisão, as torturas e, em muitos casos, a morte. Mortes essas que eram escondidas, negadas, e ainda o são. A criação de matérias como OSPB (Organização Social e Política Brasileira), bem como EMC (Educação Moral e Cívica), teve por objetivo construir uma nação obediente e crente nos grandes feitos dos mandantes da nação. De acordo com Francisco Egberto de Melo (2005, p. 3), essas matérias tinham por objetivo adequar a educação.
Após o golpe de 1964, através de uma série de leis, pareceres e atos institucionais, os governos militares que se seguiram reestruturaram a educação, com o objetivo de adaptar a escola à nova realidade política do país. Nenhuma disciplina mereceu mais atenção do que a história e matérias afins, o que culminou com a criação do ensino de Estudos Sociais, no ensino de 1º. Grau, em detrimento da História e da Geografia, além de criar o ensino de Organização Social e Política do Brasil (OSPB), no ensino de 2º. Grau – científico e profissionalizante – e tornar obrigatório o ensino de Educação Moral Cívica, nos dois níveis.
Pelo exposto acima e por acreditar que a História precisa incluir todos os sujeitos, pois todos somos sujeitos históricos, e, também, por ser o campo de estudo que me desafia e faz com que seja possível enfrentar o discurso hegemônico e dominante, sou defensora de mais tempo dedicado aos estudos históricos.
O período ditatorial vivenciado pelos cidadãos brasileiros com o golpe de 1964 teve consequências complexas em todos os sentidos e, evidentemente, a educação não ficou à parte dessas complexidades. Na realidade, a educação é uma ferramenta importantíssima na domesticação, ou, na construção de ideologias que suportem e corroborem autoritarismos, retirada de direitos, e, por que não dizer, a conformação das pessoas.
Essa conformação, ou aceitação, pode ser entendida como o resultado da construção de uma cultura através da educação, de filosofias de controle de massa que fazem parte das dominações. De acordo com Antonio Gramsci (1999, pp. 95-96), difundir pensamentos não se baseia em novas descobertas, mas em pensamentos já conhecidos e transformados como ferramentas de construir um novo paradigma. Em suas palavras:
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral.
O que significa dizer que a História precisa ser analisada por muitos prismas para não se correr o risco de cometer erros, apagamentos, anacronismos e confundir o papel de cada sujeito histórico. É necessário compreender que não existe verdade absoluta, além disso, a ciência da História se baseia em narrar os episódios relacionados à humanidade e aos seus feitos, através de métodos voltados para esse fim. Na colocação de Antonio Fontoura (2016, p. 20),
(...) história é o estudo acadêmico dos grupos humanos, de seus indivíduos e suas instituições ao longo do tempo, com base em métodos específicos, fundado em determinada tradição epistemológica.
Referências:
FONTOURA, Antonio. Teoria da história. Curitiba: InterSaberes, 2016.
GRAMSCI Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
LOBO, Andréa Maria Carneiro. Percursos da história moderna. Curitiba: InterSaberes, 2017.
MELO. Francisco Egberto de. “O ensino de estudos socias, EMC e OSPB e a ressignificação da cultura cívica nacional nas práticas escolares em escolas de Fortaleza durante o regime militar.” In: ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005. Pg. 01 – 05. Disponível em: <https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548206371_b3cba73b8c56e6369801cd3b28139c30.pdf>. Acesso em: 10 de mar. 23.
TAKIMOTO, Elika. Como dialogar com um negacionista. São Paulo: Livraria da Física, 2021.
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
Excelente, um viva aos profissionais da educação, tão desvalorizados no nosso país, infelizmente.