Toronto, 01 de agosto de 2022.
André Sena*
Há muitos anos, quando me encontrava na graduação em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, descobri algo chamado bolsa de iniciação científica. Me inscrevi então em um projeto de pesquisa que propunha um diálogo entre imprensa, relações internacionais e história. Coordenado por uma das grandes professoras do curso de História da UERJ, nosso objetivo era analisar dois jornais brasileiros em suas publicações sobre o cenário internacional, entre os anos de 1919-1939. Com isso, tínhamos a pretensão de “perceber” de que maneira as elites leitoras e letradas brasileiras eram impactadas pelos principais fatos políticos internacionais dos anos Entre-Guerras.
Crédito da imagem: Purepeople.
Fiquei com o Jornal do Brasil, e outro colega pesquisador com O País. Durante tardes infindas sentado nos bancos da Biblioteca Nacional, onde eu finalmente podia me esconder de uma namorada de quem fugia feito um cão amedrontado (na época eu fingia ser hétero), descobri rapidamente algo em meu objeto de pesquisa que imediatamente me chamou atenção: as charges do JB sobre os acontecimentos internacionais eram engraçadíssimas. Com muito humor e talento, os cartunistas do jornal educavam os leitores sobre o que acontecia no mundo, especialmente os leitores menos pacientes com os longos artigos do Serviço Tellegraphico do Jornal do Brasil (nome da coluna internacional do jornal) ou com as complexas análises sobre a ascensão de Adolf Hitler ao poder, escrita por gênios, como o imortal Barbosa Lima Sobrinho, em seu artigo “Hitler e a Esfinge”.
Minha aventura como jovem pesquisador levou-me a apresentação de um trabalho, simples, mas muito divertido, chamado As charges do JB no Entre-Guerras: História e Humor. Literalmente um TBT, do qual muito me orgulho. Poder colocar no mesmo balaio científico a arte gráfica dos cartunistas, o humor expresso nos desenhos, além de episódios históricos e internacionais dramáticos como a Guerra do Chaco (1932-35), entre o Paraguai e a Bolívia, era algo desafiador e ao mesmo tempo muito aprazível. Sobretudo para alguém que ainda engatinhava na pesquisa arquivística como eu. (Ainda engatinho. Sou um péssimo garimpeiro documental.)
Recentemente, por obra debochada do destino, a questão do humor e da história política do presente no Brasil ocuparam a minha imaginação, graças ao relato de uma amiga sobre um colega de trabalho seu, supostamente conservador e escancaradamente bolsonarista. O rapaz parece ter encerrado em si todas as maldições: racista, homofóbico, machista, sexista, etarista, gordofóbico, e apoiador do atual ocupante da cadeira do dragão do Palácio do Planalto, como não poderia deixar de ser. Entretanto algo me causou espécie, saltou-me os olhos, quando minha amiga o descrevia: ele tem por hábito imitar compulsivamente o Zacarias em seu ambiente de trabalho, a fim de conquistar a atenção das novinhas da equipe.
Calma: não me refiro aqui ao intrépido profeta que disse poucas e boas para a Casa de Israel, o décimo primeiro dos 12 profetas menores do Velho Testamento, contemporâneo de grandes vozes daqueles tempos, como Esdras e Neemias. Nada! Me refiro a Mauro Faccio Gonçalves, mineiro de Sete Lagoas, que integrou durante décadas o grupo Os Trapalhões, marcando gerações e gerações com seus quadros dominicais, e filmes que lotavam os cinemas. Inicialmente não entendi por que esse traço do nosso jacaré falante foi ressaltado por minha amiga em seu relato. Cheguei a pedir que ela confirmasse várias vezes o que me contava.
- ‘Isso mesmo meu amigo, o Zacarias; ele imita o tempo inteiro e ninguém aguenta mais.”
Gradualmente, a ficha foi caindo, e me dei conta de que isso fazia todo sentido. Zacarias era a versão mais atenuada do quarteto que nos lembra uma época no Brasil em que se podia, sem maiores receios, ser racista, machista, homofóbico, gordofóbico, sexista e ao mesmo tempo engraçadíssimo. Quem naqueles tempos não ria de um Mussum, irreverente e ao mesmo tempo chorão e subserviente. Único trapalhão visivelmente alcoólatra, Mussum era frequentemente apelidado de “Grande Pássaro” (que todos entendíamos referir-se a um urubu) por Didi, que sutilmente referia-se a cor da pele do personagem, que naturalmente se ofendia momentaneamente com a designação, ao invés de orgulhar-se. Por vezes até chorava; o mesmo Didi Mocó, que imitava debochadamente as bichas, e sempre colocava a heterossexualidade de Dedé sob suspeita, arrancando de nós risos, mais risos, e a tentação de fazer igualzinho a ele nos nossos próprios círculos.
Naturalmente, o imitador de Zacarias tem naquele tipo de humor uma referência fundamental para sua performance cotidiana, e deve achar nosso mundo de hoje muito chato. Nos dias de hoje, racismo é crime, homofobia nem tanto, mas caminhamos nessa direção, fala-se em feminicídio, ‘meu corpo minhas regras’, sororidade, bem como outras coisas que são hoje mecanismos neutralizadores da escrotidão que embalou a idade de ouro do entretenimento brasileiro por tantas décadas verde-amarelas.
Em um artigo publicado na revista Foreign Affairs chamado Fascists know how to turn mockery into power o crítico de cinema Noah Berlatsky levanta a questão do perigo de naturalizarmos certos personagens políticos através do humor, sob o risco de tornarmos suas ideias (ou a ausência delas) ainda mais visíveis, diante de um público que busca cada vez mais divertimento e risadas instantâneas. É sempre um perigo “fazer humor” sobre tiranos, ditadores e facínoras, ao mesmo tempo em que se consolida sua imagem e representação no debate público, saindo, portanto, o tiro pela culatra. O mesmo ocorre quando rimos da performance daqueles, que mesmo defendendo ideias abomináveis, tentam conquistar nossa simpatia. E aqui, dou como exemplo, o nosso trapalhão imitador do mineirinho careca, que cativou tantas crianças e adultos no passado.
A relação entre o humor e regimes autoritários, e o fascínio de gente reacionária por certas celebridades de humor é histórica. Ettore Petrolini levou a Itália fascista as gargalhadas com seus personagens de humor, especialmente em Il medico per forza, filme de 1931. Discreto apoiador de Mussolini, ele ainda em nossos dias é visto por muitos como o criador de um humor anticonformista, revolucionário e genial, bem ao sabor daqueles que hoje defendem por todo o Brasil, certas feras de Talk-Show ou azes da Comédia em Pé, que destilam atrocidades de seus palcos, debaixo de uma certa maquiagem quixotesca, contra a opressão chata do “politicamente correto.”
O historiador Stephen Gundle, da Universidade de Warwick, explora exatamente essa relação uterina entre o fascismo e o humor de forma muito original e enriquecedora. Em Laughter Under Fascism: humor and ridicule in Italy, 1922-43, Gundle examina a produção humorística italiana nos anos do Duce, desde a concepção de estereótipos considerados nocivos ao regime, até o humor de família e a piada de salão, destinado a entreter uma certa camada social burguesa, que aplaudia o fascismo, mas não dispensava umas boas risadas de ocasião.
O que dizer dos dias de hoje, em que vivemos em uma zorra total e imaginariamente pós-pandêmica, com riscos do prolongamento por mais quatro anos de um projeto de poder assustadoramente sem graça. Sem cair na tentação cafona de nosso imitador incorrigível, talvez só nos reste mesmo rir, para não chorar.
REFERÊNCIAS:
BERLATSKY, Noah. Fascists know how to turn mockery into power. Foreign Affairs, Agosto, 2020.
GUNDLE, Stephen. Laughter Under Fascism. Humour and Ridicule in Italy. 1922-43. History Workshop Journal, Volume 79, Issue 1, Spring 2015, Pages 215–232.
LUNARDELLI, Fatimarlei. Ô psit! O cinema popular dos Trapalhões. Artes e Ofícios, 1996.
TENDLER, Silvio. O mundo mágico dos Trapalhões. (documentário). Europa Filmes, 1981.
*André Sena é historiador (UERJ).
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