Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 2022.
Alexandre Belmonte*
Garcilaso de la Vega, autodenominado Inca, nasceu em Cuzco em 1539, e publicou três obras em vida, dentre as quais a primeira parte dos Comentários Reais, obra que lhe rendeu o título de um dos mais completos cronistas da época colonial. Filho de um conquistador espanhol e de palla, uma inca de família nobre, recebeu esmerada educação, tanto em Cuzco quanto na Espanha, para onde se trasladou para seguir carreira militar aos 21 anos. Como capitão, participou da repressão aos mouros de Granada, no contexto das políticas espanholas de limpieza de sangre, pautadas nas práticas da Inquisição, tendo combatido pela coroa espanhola também na Itália. Em 1590, provavelmente decepcionado pela pouca consideração que lhe tinham nas Armadas devido ao fato de ser mestiço, deixa a vida militar e entra para a vida religiosa. Frequentou os círculos humanísticos de Sevilha, Montilha e Córdoba, dedicando-se ao estudo da história americana e à leitura de obras clássicas e renascentistas. Ele próprio foi considerado um renascentista com alto grau de destreza na língua espanhola, antes de falecer em Córdoba, Espanha, em 1616.
Crédio: Andina (Agência Peruana de Notícias)
O Inca Garcilaso, seguindo a corrente humanista em voga nos círculos letrados do continente europeu, iniciou um original e ambicioso projeto historiográfico, centrado no passado americano, em especial do Peru. Deixava as forças armadas espanholas, mas carregava consigo um vasto manancial de memórias que acumulara, tanto em sua juventude no Cuzco, quanto em suas incursões a lugares e países como militar a serviço do rei. Visto como pai das letras espanholas no continente americano, publicou em 1605, em Lisboa, sua História da Flórida, defendendo a soberania da Espanha naqueles territórios. Era a crônica da expedição do conquistador Hernando de Soto, de acordo com relatos que compilou durante anos.
Seu título mais célebre, no entanto, foi sem dúvida sua obra Comentários reais: a primeira parte desta obra se publicou em 1609, em Lisboa, e a segunda, postumamente, em Córdoba (1617), sob o título de História do Peru. Os Comentários são uma mistura de autobiografia “etnográfica”, reivindicação de sua gloriosa linhagem inca e intuito de tornar conhecido o império incaico e sua conquista pelos espanhóis. Sua prosa, sem considerar a veracidade das informações que divulga, é considerada uma das mais esmeradas da língua espanhola, e é referência inegável da formação das letras latino-americanas.
Não foram poucas as controvérsias geradas entre linguistas e historiadores em torno da tradução do título, Comentarios reales. Em língua espanhola, real tanto pode referir-se à monarquia, “realeza”, quanto à veracidade, “realidade”. Com exceção de alguns idiomas – como o português, o espanhol, o galego, o italiano, o catalão – a maioria das línguas expressa essas duas conotações com palavras diversas, como é o caso das línguas germânicas e das línguas eslavas. A opção por royal/królowe ou por real/prawdziwe tem sempre sido uma opção que expressa uma determinada visão da história e dos próprios Comentários, desde as primeiras traduções para as línguas germânicas, ainda no século XVII. Em 1633, Jean Baudoin traduz a obra em francês por Le commentaire royal (e não réel ou véritable), indicando que eram comentários desde um ponto de vista da monarquia, da realeza, e colocando, assim, a obra do Inca Garcilaso como balizadora de uma visão tradicionalista da colonização espanhola na América. Outras traduções, como a inglesa de Sir Paul Rycault, de 1685, igualmente corroboram essa visão da obra, ao traduzi-la por The Royal Commentaries of Peru.
Algumas traduções do texto de Garcilaso, sobretudo mais atuais, buscam ressignificar a ambiguidade do título da obra, traduzindo-a por verdadeira. Assim é a tradução polaca de 1991, publicada pelo CESLA, em Varsóvia, que opta por usar prawdziwe komentarze. Também os suecos mencionam a obra como den sanna historien, onde sanna significa verdadeira.
Esta nos parece ser a opção mais acertada de tradução, por interpretar a ambiguidade do título levando em conta a atenção ao estatuto de veracidade da obra, retórica tão típica das relações de viagens e das crônicas da conquista colonial, desde o século XVI. Assim ocorre com a relação de viagem de Jean de Léry, que pretende escrever uma histoire véritable, e é comum em toda a sua obra o uso desse argumento retórico que remonta a Cícero. A finalidade da história era ser o speculum vitae, o espelho da vida: à máxima Historia est magistra vitæ (“A história é mestra da vida”), Léry acrescenta um novo aspecto da história, como lux veritatis, (“luz da verdade”). Através de exemplos de repertórios, regras e modelos “acertados” para se escrever sobre o Novo Mundo e sua história, buscava-se, assim, dar provas do estatuto de realidade de sua história (BELMONTE, 2012, p. 53-72). Também a obra de Garcilaso reflete essa realidade, marcada, do ponto de vista das retóricas renascentistas, pela crucial importância da testemunha ocular que presencia e narra os fatos. Pela sua própria origem híbrida, e pelo fato de disso se orgulhar, é muito improvável que o Inca Garcilaso quisesse referir-se à realeza no título de sua obra – e talvez foi apenas por conveniência e ironia que tenha optado por usar esse termo ambivalente.
A obra do Inca Garcilaso, além de ser expressão renascentista da língua castelhana no Novo Mundo, é também a mais explícita e intensa expressão do dilema cultural e do drama íntimo que constituía ser um mestiço americano nos primórdios da colonização espanhola. Boa parte dos Comentários reais aborda a história e a cultura do Império Incaico, enaltecendo Cuzco como uma segunda Roma, e rebatendo a quem tratava de “bárbaro” o nativo peruano. Enxerga nos incas uma missão civilizadora perante os povos que dominou, sendo ultrapassados pelos espanhóis, que deveriam “aperfeiçoar” esse projeto com o cristianismo.
O cronista nasceu apenas sete anos depois do inca Atahualpa ter sido derrotado por Pizarro. A era dos conquistadores se acabava definitivamente, tanto no Peru quanto no México, e os funcionários da coroa em território americano esforçavam-se para apagar do passado colonial alguns vícios praticados pelos conquistadores, sobretudo na relação arbitrária e desordenada com a posse de terras e índios. Em 1542, há um enorme conjunto de leis que enchem alguns volumes, todos regulamentando vários aspectos da vida na colônia, as Leyes Nuevas, regulando a relação dos oficiales com os indígenas, os escravos, as terras e o trabalho. Garcilaso nasce no momento em que a coroa espanhola reestrutura a colonização, fundando uma sociedade baseada no fenótipo e na “pureza do sangue”, ideia tão cara à realeza espanhola desde que Isabel, a Católica, expulsa de seus domínios judeus e mouros. Na América, essa ideia de pureza assume ares de limpieza de sangre, e também de valores, crenças e práticas consideradas idólatras e pagãs.
O próprio nascimento do Inca Garcilaso é a expressão do encontro de culturas a partir da derrocada do Tawantinsuyu. É significativo o fato de seu pai ter sido um conquistador, e sua mãe uma palla, mulher de sangue real, neta de Túpac Yupanqui e sobrinha de Huayna Cápac, o último dos grandes imperadores do incário, antes que começasse já a ruir sob a disputa de seus filhos Huáscar e Atahualpa. Sujeito cindido, sua mestiçagem é todo o cerne do sistema colonial espanhol na América: Garcilaso representa o hibridismo tão característico da América, Novo Mundo, lugar de encontros e desencontros de culturas, origem de uma mestiçagem realizada e vivida de formas violentas. Seu pai acabou cedendo às pressões de seus pares para deixar a mãe de Garcilaso e casar-se com uma nobre espanhola, conforme era “bom costume”. Queria-se, assim, criar uma sociedade distanciada da época dos conquistadores, acabada com o sucesso das tropas de Pizarro contra Atahualpa. A primeira mestiçagem que caracterizou a época dos conquistadores já era vista, acabado o fatídico ano de 1532, como algo a ser ultrapassado – tanto do ponto de vista moral, como do ponto de vista do fenótipo. O intuito espanhol era manter um rígido sistema de castas. Mas Garcilaso já é um jovem pelos idos de 1555, e já é prova do hibridismo: é um americano. Supera em muito os filhos dos chapetones em seus anos de educação em Cuzco e destaca-se desde cedo como portador de grandes aptidões literárias e humanistas. Nesse sentido, sua mestiçagem também representa o “melhor” de duas culturas, ou, pelo menos, parece ser assim que ele gostava de se pensar: o melhor da cultura nativa, oriundo de sua mãe, uma ñusta incaica, e o melhor de Espanha e da cultura cristã, encarnados na figura de seu pai, ele próprio um conquistador.
Sua infância e juventude transcorreram em Cuzco, onde teve bastante contato com a panaka inca, a antiga nobreza, e também com espanhóis ligados à coroa e provenientes de vários pontos do Novo Mundo, que lhe relatavam suas experiências de conquistas. Aos 21 anos, Garcilaso ingressa nas armas espanholas. Tenta, inutilmente, receber pensão pela morte do pai, mas devido ao apoio deste a Pizarro, a coroa lhe nega o direito. Combate os mouros em Granada, luta na Itália. Trinta anos mais tarde, muito provavelmente decepcionado pela pouca consideração ao fato de ser mestiço, deixa as armas e entra para a religião, terminando sua vida como um humanista reconhecido.
É interessante observar como a iconografia o retratou. Em alguns quadros, o escuro de sua pele desaparece, e na pintura se vê um homem embranquecido. Raramente o Inca aparece representado fielmente como um mestiço. No entanto, ele próprio levou a ideia de mestiçagem como a originalidade da empresa colonial. O escritor assevera:
A los hijos de español y de india o de indio y española, nos llaman mestizos, por decir que somos mezclados de ambas naciones; fue impuesto por los primeros españoles que tuvieron hijos en indias, y por ser nombre impuesto por nuestros padres y por su significación me lo llamo yo a boca llena, y me honro con él. Aunque en Indias, si a uno de ellos le dicen "sois un mestizo" o "es un mestizo", lo toman por menosprecio (GARCILASO, 1960, p. 373-374).
O Inca Garcilaso buscou dar dignidade aos incas e a seu império com seus Comentarios Reales. Não admitia que estes tivessem praticado sacrifícios humanos, atribuindo-os a povos “bárbaros” pré-incaicos: o Tawantinsuyu surge nos Andes como verdadeiro projeto civilizatório. A nobreza inca, da qual ele próprio era parte, nada deixava a desejar em relação à espanhola. Para completar um efetivo processo civilizatório, porém, faltava o cristianismo, daí a aceitação da colonização espanhola como agregadora de valores civilizados à corte de pallas e panakas incas.
Hoje, é crucial a importância do Inca Garcilaso para a América Latina.
Empenhados em determinar a igualdade de suas diferenças, e incluir as diferenças num projeto nacional, os países latino-americanos têm em comum uma trajetória de busca de sua identidade, após a espetacular cisão ocorrida em 1492. Durante o século XIX, período de intensos debates sobre a natureza desta identidade, índios e negros foram excluídos do projeto civilizador de vários países americanos. Assumir, como o fez Garcilaso, uma identidade mestiça, é assumir com verdade o hibridismo de que somos herdeiros. O hibridismo é a resposta silenciosa a uma colonização violenta. É o fruto deste atrapalhado encontro. Passados quinhentos anos da invasão europeia, é momento de, como Garcilaso, colhermos esses frutos com orgulho, e nos assumirmos mestiços.
*Alexandre Belmonte é professor de História da América Antiga e Colonial na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisador do NUCLEAS/UERJ, LABIMI/UERJ e ABNB/Bolívia.
Referências:
BELMONTE, Alexandre. Saudades do Novo Mundo: a aventura de Jean de Léry. Rio de Janeiro: Mundo Contemporâneo, 2012, pp. 53-72.
BOUYSSE-CASSAGNE T., HARRIS O., PLATT T.- Tres reflexiones sobre el pensamiento andino. La Paz: Hisbol, 1987.
GARCILASO DE LA VEGA, El Inca. Comentarios reales de los Incas [1609]. Edição de Carmelo Sáenz de Santamaría. Madrid: Eds. Atlas, BAE, 1960.
_____. Obras completas del Inca Garcilaso de la Vega. Edição de Carlos Araníbar. Lima: Ministerio de Relaciones Exteriores del Perú y el Centro Cultural Inca Garcilaso, 2016.
LÓPEZ-BARALT, Mercedes. El Inca Garcilaso, traductor de culturas. Madrid: Iberoamericana 2011.
WACHTEL, Nathan. La Vision des vaincus. Paris, Gallimard, 1971.