Rio de Janeiro, 01 de fevereiro de 2024.
*Gabriel Léccas
Comemorar é lembrar junto. Em julho de 2023, tivemos a oportunidade de comemorar o bicentenário das lutas baianas de libertação, que compuseram parte fundamental do processo de independência do Brasil, duzentos anos atrás. Apesar de as celebrações mais importantes terem ficado restritas ao estado da Bahia, a festa do bicentenário do 2 de julho serve como ponto de partida para refletir sobre muitos dos debates do tempo presente no Brasil, ainda marcado por conflitos políticos que, nos últimos anos, envolveram posicionamentos sobre a memória da independência. Este texto busca, portanto, levantar algumas reflexões a partir da análise das festas do bicentenário em Salvador, tratando os festejos, ao mesmo tempo, como enunciadores de uma memória sobre o passado e como documentos históricos de nosso tempo.
Ao longo de 2023, muito se escreveu sobre o 2 de julho. Este blog conta com um belo texto de Luciene Carris que analisa a história das lutas baianas. Minha contribuição se baseia na experiência pessoal de acompanhar os festejos do bicentenário em Salvador, e com isso proponho a discutir como as celebrações expressam as visões dos baianos de hoje sobre seu passado, posicionando-se sobre o significado histórico da data. Para o discurso oficial do governo estadual por meio de anúncios publicitários, a data se tratou da “independência do Brasil na Bahia”, e não somente a “independência da Bahia”. Na primeira edição da revista Viva Bahia!: cultura, história e turismo, financiada com recursos públicos e distribuída gratuitamente, a Carta da Redação faz o convite ao leitor: “Entre nessa festa. A festa do povo. Venha comemorar com a Bahia, os feitos, os sacrifícios, o destemor das mulheres baianas, os fatos históricos que determinaram a vitória da liberdade e a consolidação da independência”.
Pensar o 2 de julho como consolidação da independência nacional, discurso assumido e divulgado pelo governo baiano, implica resgatar a memória do 7 de setembro, pois só se consolida o que já está em curso. Assim, entender o 2 de julho como consolidação da independência reforça a tese de que o grito do Ipiranga não garantiu a independência. Nota-se, portanto, o efeito político limitado de Pedro I e da princesa Leopoldina, que assinou a proclamação em 2 de setembro. No Brasil recente, a lembrança das celebrações oficiais do bicentenário do 7 de setembro e de seus usos políticos pelo então presidente Bolsonaro indicam disputas em torno da data, o que torna a celebração do 2 de julho ainda mais fundamental. Sobre o bicentenário de 2022, a propósito, este blog conta com ótimos textos de Mario Brum e de Carlos Eduardo Pinto.
A proclamação de Pedro I no Dia do Fico serviu como alerta às forças portuguesas da possibilidade de separação, e a Bahia era uma província estratégica na disputa. A nomeação do general português Madeira de Melo para substituir o brasileiro Pedro de Freitas como Comandante das Armas da Bahia, em fevereiro de 1822, causou divisão entre os baianos e contribuiu para intensificar a repressão portuguesa na província, gerando vítimas como a freira Joana Angélica, assassinada por militares portugueses ao resistir à invasão do Convento da Lapa, no dia 19 do mesmo mês. Logo, parte da sociedade baiana a favor da independência pegou em armas e, com o apoio de mercenários europeus como o francês Pedro Labatut e o irlandês Thomas Cochrane - pagos por Pedro I com empréstimos britânicos - integrou batalhas que formaram importantes personagens e lugares de memória para os brasileiros.
No sábado, 1o de julho, o ponto alto da celebração foi a chegada do fogo simbólico ao túmulo do general Labatut, no bairro de Pirajá, hoje um bairro pobre de Salvador. Na praça General Labatut, a cerimônia foi acompanhada de mobilização da sociedade civil: um grupo de mães passava uma lista de assinaturas para exigir a construção de uma creche pública no bairro, sob o lema “Pirajá não existe apenas no 1o de julho”, ao lado de cartazes contra o feminicídio, luta recuperada no discurso da vice-prefeita, Ana Paula Matos. A batalha do Pirajá foi uma das que lutou Maria Quitéria, símbolo feminino exaltado na memória do 2 de julho, assim como Joana Angélica e Maria Filipa, negra que enfrentou os portugueses na ilha de Itaparica. Na propaganda oficial do governo, essas três mulheres são representadas como mulheres negras, incorporando as pautas da atual luta antirracista.
Imagem 1. Na praça general Labatut, em 1o de julho, uma moradora hasteia a bandeira com o rosto de Maria Filipa. Foto do acervo pessoal.
No domingo, dia 2, o tradicional cortejo em saudação ao caboclo e à cabocla foi uma grande festa. A figura do caboclo - mestiço de branco e indígena - indica a centralidade da participação popular na luta pela independência. Associado aos orixás de Angola, o caboclo compõe um panteão de figuras sagradas para os baianos. Em tempos de recentes notícias sobre o genocídio yanomani, o reconhecimento popular das lutas nativas no bicentenário do 2 de julho indica um caminho importante a se seguir nas batalhas da memória. No domingo à noite, a resistência cabocla foi mais uma vez exaltada pelo BaianaSystem, que encerrou a experiência dos festejos no dia, celebrando não só o bicentenário, mas ainda a recém anunciada inelegibilidade de Jair Bolsonaro, por abuso de poder em 2022.
A memória do 2 de julho conflita com a memória oficial do 7 de setembro porque mostra que nossa independência foi marcada por lutas sangrentas com amplo protagonismo popular e feminino, descaracterizando a narrativa tradicional de que, por aqui, a libertação resultou de um acordo pelo alto liderado por Pedro I, e as celebrações oficiais do bicentenário do 7 de setembro e do 2 de julho aprofundam esse contraste. A transformação da festa do bicentenário de 1822 em comício eleitoral, o que lhe custou a segunda condenação à inelegibilidade em novembro, marcou a tentativa de sequestro dos símbolos nacionais operada por Bolsonaro. O bicentenário do 2 de julho marca a importância de se valorizar o protagonismo popular, misturando manifestações políticas e culturais num resgate plural da memória da independência que enfatize os recortes de gênero, raça e classe na escrita de nossa história. Ao mesmo tempo, foi uma festa do povo, não de um governante, que mesclou as lutas pelo direito à memória e pelo direito à cidade.
Imagem 2. No cortejo de domingo, dia 2, manifestações anti-Bolsonaro e pró-Lula, dominantes no trajeto do evento. Foto do acervo pessoal.
No 7 de setembro, gritou-se “imbrochável”; no 2 de julho, gritou-se “inelegível”. No discurso oficial da presidência em 2022, o grito do Ipiranga deu lugar ao grito de um caubói americano, reforçando ainda mais a exaltação da liberdade nos moldes estadunidenses de nos armarmos uns contra os outros, assim como nos filmes de faroeste. Os discursos apresentados pela sociedade baiana em 2023, por sua vez, enfatizaram figuras centrais de nossa brasilidade. Também exaltaram com frequência o refrão de seu hino, lembrando a todos que “com tiranos não combinam brasileiros corações”, numa demonstração de resistência antibolsonarista.
Em síntese, preservar a memória do 2 de julho energiza o esforço político de se romper com os referenciais sudestinos e eurocêntricos na reconstituição da memória da independência. Na pior das hipóteses, uma boa lembrança do bicentenário do 2 de julho será a de que a democracia ainda é viável, hoje, no horizonte de possibilidades do futuro.
Talvez seja a hora de a Bahia nos dar régua e compasso também nas batalhas da memória do passado e do presente.
Referências:
Revista Viva Bahia: cultura, história e turismo. Julho/Agosto 2023. Ano 1. No 1. Bahia - Brasil.
PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. “Entre o coração e a espada: a (des)monumentalização de D. Pedro I”. Disponível em:
https://www.boxdigitaldehumanidades.com/post/entre-o-cora%C3%A7%C3%A3o-e-a-espada-a-des-monumentaliza%C3%A7%C3%A3o-de-dom-pedro-i Acesso em: 23 nov. 2023.
CARRIS, Luciene. “Salve o caboclo! Salve a cabocla!”. Disponível em: https://www.boxdigitaldehumanidades.com/post/salve-o-caboclo-salve-a-cabocla. Acesso em 23 nov. 2023.
BRUM, Mario. “2 sambas e 1 bicentenário: as Histórias do Brasil e o que fazer com ele?”. Disponível em: https://www.boxdigitaldehumanidades.com/post/2-sambas-e-1-bicenten%C3%A1rio-as-hist%C3%B3rias-do-brasil-e-o-que-fazer-com-ele. Acesso em 23 nov. 2023.
*Gabriel Léccas é professor de História formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestrando em História Política pela mesma universidade. Tem interesses nas áreas de ensino de História, História Política e História das Américas.
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