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Memórias de antigos carnavais de rua

Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 2022.

Luciene Carris*


Pelo segundo ano consecutivo, o carnaval de rua foi desmarcado do calendário oficial do Rio de Janeiro. A razão não pode ser ignorada. A pandemia do coronavírus ainda está por aí à espreita. Como uma boa foliã, me sinto órfã dos blocos de rua e da tradicional “feijoada das cinzas”, que ocorria às quartas-feiras na Casa Azul reunindo amigos e boa comida. A diversão era sempre garantida. Saudades dos blocos como Suvaco do Cristo, Vagalume O verde e Fofoqueiros de Plantão, que tradicionalmente desfilavam na rua Jardim Botânico alegrando muitos cariocas e turistas.


Crédito: Wix.


A vocação do bairro para o carnaval é antiga, em especial, a parte da região do Horto, onde havia um expressivo movimento operário e associações dançantes e esportivas como o Clube Recreativo Musical da Fábrica Carioca. Festas, bailes, futebol e procissões faziam parte do cotidiano dos trabalhadores têxteis. A “geografia da festa” na região foi bem analisada por Mariana Costa, que examinou as diversas associações carnavalescas criadas nas primeiras décadas do século XX. A lista é grande, convém aqui destacar: a Sociedade Carnavalesca Flor da Carioca, com sede na rua Jardim Botânico; a Sociedade Carnavalesca Canoinha de Ouro, na rua da Escola, a Sociedade Carnavalesca Filhos da Chuveiro de Ouro na rua Lopes Quintas, Grupo dos Pavorosos da rua Jardim Botânico e Bloco dos Gravatas da rua da Escola, entre outras agremiações. De acordo com a historiadora, tais espaços funcionavam como uma forma de mobilização e solidariedade de trabalhadores, pois “estes sujeitos faziam do associativismo recreativo um meio de criar espaços comuns de convivência entre eles, transformando suas atividades cotidianas em um elemento de sociabilidade entre os mesmos” (COSTA, 2014, p. 81).


A narrativa de moradores mais antigos permite ainda compreender as transformações do bairro ao longo do século, como observamos na obra organizada por Maria Nilda Bizzo (2005). Nas reminiscências de moradores, encontramos as lembranças de diversos encontros musicais realizados do Club Musical Carioca, com a participação de inúmeros artistas do cenário cultural brasileiro que atraíam, pessoas de outros lugares. Artistas como Mário Lago, Tônia Carrero, Grande Otelo, Risadinha e Jamelão frequentavam o espaço.


Se durante o dia destacavam-se os operários, à noite era dos músicos e bailarinos. Joviniano de Paulo Bohemio foi uma dessas figuras que transmitiu o conhecimento musical aos demais trabalhadores. O Mestre Joviniano, atualmente é homenageado com o nome de uma rua transversal na rua Pacheco Leão, que é atribuída como a porta de entrada da antiga Fábrica Carioca. O Clube Musical Carioca localizava-se na rua Von Martius, onde encontramos atualmente a conhecida rede de televisão. Era um espaço de música, de lazer e de política, uma vez que o movimento operário no bairro não ficou isolado das influências das ideias consideradas “subversivas”. De acordo com o periódico Tribuna Popular, vinculado ao Par­tido Comunista, compareceram cinco mil pessoas para assistir ao show de Nelson Gonçalves, de Garoto e seu conjunto Namorados da Lua, Os Cariocas, Dilermando Pinheiro, Brandão Filho, Lenita Bruno, entre outros famosos (Tribuna Popular, ed. 426, 23/10/1946, p. 04).


Aliás, ainda é apontada a existência de espaços de sociabilidades como o Carioca Esporte Clube, o Club Musical, o Club Panamericano, atualmente, Condomínio Esporte Clube, o Clube 17 e o Clube Caxinguelê. Outros blocos de carnaval surgiram depois como: da Fábrica, da Alvorada, do Assunção, do Urubu Cheiroso, da Bicharada, da Lata, Continental, da Tina, Galo de Ouro, Unidos do Jardim Botânico, das Piranhas, do Caxinguelê, dos Cubanos, Suvaco de Cristo, Força Jovem do Horto e Vagalume O Verde, Boa Ideia, entre outros (BIZZO, 2005, p. 139).


Uma dessas figuras nascidas no meio musical da região foi o compositor Haroldo Lobo, recuperada pelo pesquisador Carlos Monte em suas recentes investigações. Nascido em 1910, no seio de uma família de músicos, ele realizou seus primeiros estudos musicais no clube recreativo operário da fábrica Carioca, e teve a sua primeira composição consagrada com o samba Juro, escrita com o seu parceiro de várias músicas, Milton de Oliveira, sendo premiada, pelo Distrito Federal, no carnaval de 1937.


Haroldo Lobo se destacou como autor de cerca de 600 composi­ções, muitas feitas em parceria, entre as quais, clássicos carnavalescos conhecidos até hoje, que animam os discípulos de Momo, a exemplo de Allah-lá-ô, Retrato do Velho, Índio quer apito e Tristeza. Inspirava-se no cotidiano dos habitantes da cidade e nos acontecimentos polí­ticos na elaboração de suas composições. Outros compositores locais, que elaboravam sambas e marchinhas para blocos no carnaval foram o Seu Nilson, o Dodô, que compunha para o Bloco do Assunção, Sr. Nilo Tozzi, do Bloco da Lata e Sr. Heraldo, do Bloco Força Jovem do Horto. Um outro espaço digno de nota era a “casa da Tia Elza”, local dos concorridos pagodes que lá ocorriam, sempre lembrados nas memórias de antigos moradores. Foi em um desses encontros festivos, que foi idealizado o Bloco Vagalume O Verde, que mantém uma identidade com o Horto. De acordo com um dos seus idealizadores, Hugo Camarate,


a confirmação para escolha do nome vagalume para o bloco se definiu mesmo na casa da Tia Elza no Horto, ela organizava umas festas bem conhecidas na região, um grupo tocava pagode/samba e ela servia uma feijoada maravilhosa. Numa determinada hora da noite, me deparei com um bambuzal dentro do quintal da casa repleto de vagalumes (CAMARATE, 2021).


O carnaval é recuperado como um dos melhores acontecimentos no bairro, pois havia uma pluralidade de grupos car­navalescos que desfilavam nas ruas com competições acirradíssimas de fantasias, muitas cuidadosamente elaboradas, e de marchinhas. Mas a vocação ainda permanece através das lembranças de muitos moradores, da atuação de músicos locais e de novos blocos, que dialogam com a retomada do carnaval de rua, aliás, um fenômeno que, em alguma medida, remete aos entrudos, ranchos, cordões e das sociedades carnavalescas com a sua espontaneidade característica.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).


Referências:

BIZZO, Maria Nilda (Org.); SALES, Rita de Cássia e NEVES, Célia Regina. Cacos de memórias – Experiências e desejos na (re)construção do lugar: o Horto Florestal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fábrica de Livros, 2005.

CARDOSO, Luciene Pereira Carris. Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca (1884-1962). Rio de Janeiro: Telha, 2021.

CAMARATE, Hugo. Jardim Botânico: um bairro que sempre deu samba (Episódio 37, 2021). Sarau da Casa Azul Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0I4G4XG4LaGHRDxFoBGE47?si=674ee064f13943e0 Acesso em: 14 fev. 2022.

Costa, Mariana Barbosa Carvalho da. Entre o Lazer e a Luta: o associativismo recreativo entre os trabalhadores fabris do Jardim Botânico (1895-1917). Rio de Janeiro, 2014, 158p. Dissertação de Mestrado – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/25086/25086.PDF Acesso em: 14 fev. 2022.

MONTE, Carlos. Haroldo Lobo nasceu para o carnaval (Episódio 36, 2021). Sarau da Casa Azul Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/4l3FnONvXuRGq5bj6LXEi0?si=d35b26cf3ffa46b8 Acesso em: 14 fev. 2022.

NOVO, Cássio Lopes da Cruz. O Lugar do Vagalume: uma análise sob as perspectivas da nova geografia cultural e humanística de um bloco carnavalesco do Rio de Janeiro no início do século XXI. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015 (Dissertação de mestrado).

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