Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2024.
Cláudio Renato Passavante*
Quando Dalton Trevisan decidiu afastar do convívio, em 2001, o escritor Miguel Sanches Neto, então com 35 anos, cometeu uma injustiça histórica. Assumimos a missão de perscrutar a vida do sombrio ermitão de Curitiba. Durante quase 30 dias, foram entrevistadas dezenas de pessoas, mas o pupilo emudeceu. Fiel à amizade de Dalton, revelou quase nada. O vampiro, no entanto, não tolerou as fotografias roubadas e o perfil indiscreto estampados nas páginas de uma gazeta de circulação nacional. Alguém teria que pagar por aquilo. O rapaz tornou-se, para Dalton, um Cristo ou Judas às avessas. A amizade foi rompida definitivamente quando Sanches Neto começou, em 2004, a escrever o romance à clef (com os situações e nomes cifrados) Chá das Cinco com o Vampiro, publicado há dois meses pela editora Objetiva.
A estaca certeira está no acervo mantido pela pesquisadora Cassiana Lacerda Carollo, que resgatou novela, críticas, aforismos e sonetos de adolescência renegados pelo autor de A Polaquinha. Professora do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Cassiana Lacerda pretendia divulgar os textos antigos e ainda ousava propor a criação de uma Casa do Vampiro, para exibir o acervo proibido na rua Emiliano Perneta, onde o contista nasceu. "É importante deixar para as futuras gerações referências históricas sobre o gênio de Dalton Trevisan", alegava. O contista a ameaçou com uma ação judicial.
Cassiana conheceu Dalton quando frequentava, como aluna, a universidade, nos anos 60. Vivia na Lapa, a 60 quilômetros de Curitiba, onde o autor passava férias. Dalton era colega, na Faculdade de Direito da UFPR, de Francisco Lacerda, tio de Cassiana. A jovem começara a se interessar cedo por literatura graças ao crítico Temístocles Linhares, sócio do pai dela, Jair Lacerda Jr. na fábrica de chá-mate da família. Linhares foi um dos primeiros colaboradores da Joaquim, revista dirigida por Dalton Trevisan. Ali, o contista redigiu textos entre abril de 1946 e dezembro de 1948.
Dalton visitava muito a Lapa, quando a Cassiana Lacerda tinha 22 anos. A pesquisadora foi amiga do escritor até o dia em que ousou questionar a suposta traição de Capitu a Bentinho, personagens do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. O escritor carioca é, entre os brasileiros, a maior paixão literária de Dalton Trevisan. "Ele rompeu comigo alegando o que sempre escreveu: se Capitu não traiu Bentinho, Machado se chamaria José de Alencar." Cassiana diz que admira muito a obra de Dalton, mas, "ao contrário de outras de pessoas da inteligência curitibana", não quer "alimentar com ele uma relação de subserviência." Para o crítico literário Wilson Martins, morto em Curitiba em 30 de janeiro passado, aos 89 anos, o resgate dos primeiros textos de Dalton Trevisan fora importante e, sobretudo, surpreendente. "Eu mesmo não sabia das crônicas esportivas", disse Martins, que trabalhou com o contista na década de 40.
Os escritos desprezados pararam nas mãos de Cassiana graças a um descuido do próprio Dalton, que, aos 16 anos, doou a coleção completa dos textos redigidos no jornal Tingüi ao Instituto Neopitagórico, sociedade literária fundada pelo poeta Dario Veloso (1869-1937). Lá estavam, entre outros, os Sonetos Tristes e Visos. O jornalzinho era vendido numa banca da Rua XV, de Jorge dall'Ignna. O Tingüi e, mais tarde, a Joaquim funcionaram na mesma casa, onde Dalton Trevisan nasceu, também sede administrativa da fábrica de cerâmicas e vidros Trevisan, ironicamente na rua Emiliano Perneta. O poeta simbolista Perneta (1866-1921), ícone do beletrismo na cidade, foi a maior vítima post mortem das críticas de Dalton.
O acervo de Cassiana Lacerda é raro. Ela tem, por exemplo, um dos 20 livros da edição especial de Novelas Nada Exemplares (José Olympio, 1954), assinado pelo autor. Primeira obra de Dalton Trevisan de circulação comercial, as Novelas conquistariam os prêmios Jabuti e do Instituto Nacional do Livro, mas foram recebidas com reservas pelo crítico literário Otto Maria Carpeaux, a quem Dalton jamais perdoou. Sempre se referia a Carpeaux como "o gago", em alusão à disfemia de um dos maiores críticos literários do Brasil. Dalton voltaria a conquistar o Jabuti com Cemitério de Elefantes (1964). Ele foi consagrado nacionalmente em 1969, quando com O Senhor Meu Marido ganhou o Concurso Nacional de Contos.
Cassiana Lacerda dispõe de elementos para construir a biografia de Dalton Trevisan, mas ainda não se decidira a fazê-la. Foi dela a descoberta de que, aos 14 anos, Dalton atuou como cronista esportivo em uma revista intitulada O Livro. Em 1939, ainda assinava Dalton Jérson Trevisan e defendia o esporte como "elemento necessário à formação do caráter." Fundista do Atlético Paranaense, sonhava em ser campeão dos 110 metros com barreira. "O Brasil deverá ter seus sábios atletas." No artigo Duas glórias nacionais, demonstra má vontade em relação ao futebol e ao samba, especialmente a Carmem Miranda, pela "supervalorização que distorce a consciência nacional." Com a turma do direito, integrou o time que jogava no estádio do Coritiba. Ele se formou em dezembro de 1947.
Em meio às pesquisas, Cassiana tentou relançar a revista Joaquim. Foram 21 números, que alcançaram repercussão nacional. Contava com a colaboração de Wilson Martins e Temístocles Linhares, além dos ilustradores Poty, Viaro e Renina Katz. Nas páginas da revista - "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil" - Dalton lançou os primeiros livretes, Mistérios de Curitiba (1946) e Sete Anos de Pastor (1947), e publicou traduções de Tchecov - cujos contos comparava em delícia à pitanga e às balas azedinhas -, Tolstoi, Kafka, Joyce, Cervantes, Salinger e Rilke, cuja Carta a um Jovem Poeta costuma presentear aos poucos "novos" com quem simpatiza. A iniciativa de reeditar a Joaquim foi, enfim, proibida pelo contista. "Ele me chamou de necrófila, apesar de eu haver proposto que se retirassem os contos que assinou."
Dalton Trevisan promoveu no Tingüi um concurso de contos que ele mesmo ganhou, com Trapo, a história de um homem submisso. O prêmio: uma ilustração de Guido Viaro. Na época, ainda não reescrevia 12 vezes uma narrativa. "Creio que o fenômeno de reescritura obsessiva começa com Minha Cidade, em 1946", conta Cassiana. "Ele publicou o conto na Joaquim para, em seguida, republicá-l0, com modificações, no Guaíra." Na formatura do colégio Iguaçu, orador da turma, Dalton não pôde proferir o discurso nem publicá-lo no Tingüi , por causa das críticas que fazia ao ensino da época. Cassiana possui ainda reproduções de fotos do contista, menino, ao lado dos irmãos Derson e Hilton Dácio, que também colaboraria no Tingüi. O anunciante mais assíduo do periódico foi a fábrica Trevisan. A família apoiava a carreira do escritor. A professora dispõe também de 14 cordéis que ele lançou, de 1953 a 1964.
Dalton Jérson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925 na rua Aquidabã 80, atual Emiliano Perneta, onde funcionou a fábrica de cerâmicas e vidros do pai, João Trevisan. A família Trevisan teria origem na cidade de Treviso, no norte da Itália. Os primeiros representantes se estabeleceram, em 1888, na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul. Aos 15 anos, Dalton escreveu no Tingüi: "A questão foi que nasci...Foi numa madrugada, friorenta e úmida, de um 14 de junho que nasci, e desde já, errado como agora. Em vez de escolher uma noite cálida e poética em que a lua - minha namorada mais inconstante - estivesse a passar sonhadoramente, fui surgir nesta barca de Noé, em uma madruga trêmula e encapuçada. A questão foi que nasci...E, para me vingar desta primeira ironia da sorte, berrei até quase estourar." Na revista, que teve 43 números, Dalton Trevisan foi redator, cronista, repórter e crítico. Assinava com pseudônimos: Faminto, De Alencar, Notlad, D.Nada, Rapaz.
Desde menino, Dalton foi ótimo aluno. Quando prestou exame para o Iguaçu, aos 8 anos, obteve média 92. No curso complementar de direito, no colégio estadual, conquistou graus 99 em literatura e 92 em história da civilização. "Estudei o que achei que devia ter estudado; por isso, sou o que sou. Podia ter dado ladrão. Por enquanto, dei em nada", escreveria em 1943. Aos 14 anos, Dalton começou a colaborar com a revista O Livro, fundada naquela ano de 1939 por Roberto Barone Filho. Escrevia, principalmente, sobre esportes. Em 1940, fundou o Tingüi - "órgão dos ginasistas intelectuais publicado pelo Centro Literário Humberto de Campos." O jornalzinho circulou até 1943, período em que Dalton cursou o Colégio Iguaçu e o pré-jurídico. Nessa época, o Tingüi já era publicado pelo grêmio cultural General Rondon. Aos 16 anos, óculos de sete graus de miopia, frequentava as salas Avenida, Luz e Imperial, que não existem mais. Em literatura, encantava-se com Monteiro Lobato.
O Tingüi parou de circular quando Dalton completou 18 anos e passou no vestibular. Foi nesse jornal que publicou o polêmico artigo Percevejos, pulgas e sapos, um sopapo no beletrismo, sublinhado, mais tarde, pelo irascível Emiliano, o poeta perneta, na Joaquim. O texto causou tanto mal-estar que provocou a saída de um dos diretores da revista, Erasmo Pitoto. Dalton considerava-se integrante da "geração de 20 anos da ilha", de poetas isolados pelos simbolistas e tradicionalistas. Regurgitava aforismos: "O adultério é nojento (principalmente pela parte da mulher). Tem gosto de bagaço de laranja." Com o fim do Tingüi, o contista trabalharia como repórter policial e crítico de cinema no Diário do Paraná.
No escritório da fábrica Trevisan, Dalton fez o escritor e se desfez do consultor jurídico. A tabuleta na porta denunciava a vocação para a esquiva. "Não se faz anúncio/não se assina revista/não há verba/não insista." Com o fim da empresa, o terreno se tornou estacionamento. Em sete anos, ele declinou dos pareceres.
Ano de publicação de Sonata ao Luar, 1945 foi importante para a trajetória de Dalton. Ele venceu um concurso no Paraná com Conto tirado de uma notícia de jornal. Quase morreu em 11 de março, em consequência da explosão de uma caldeira na fábrica. Fraturou o crânio. Um mês no hospital. Costumava dizer que o acidente mudara-lhe até a perspectiva literária.
Em 1948, quando a Joaquim morreu, Dalton comandava as reuniões do Clube de Cinema de Curitiba. Até hoje gosta de filmes de terror, comédias italianas e clássicos de Charles Chaplin, Woody Allen, Fassbinder, Jornada nas Estrelas. Em 1949, colaborou com o Guaíra e viajou seis meses pela Europa, único passeio ao exterior. Em 1951, começou a escrever para a Gazeta do Povo.
Casou-se com Yole Bonato, em 1953. Teve duas filhas, Isabel e Rosane. Yole e Isabel morreram quase na mesma época, em 1997. Dalton passou a viver só na casa da Rua Ubaldino do Amaral. A cachorrinha Fifi também se foi. O escritor tem duas netas: Catchuska, que nasceu em Londres, e Nataska, ambas com pouco mais de 30 anos, filhas de Isabel e Arion Cornelsen. O irmão Hilton Dácio também vive em Curitiba.
Dalton Trevisan cuida dos jardins, ocupa-se de trabalhos manuais. Prefere escrever de manhã, em máquina datilográfica mecânica no escritório do lado de fora da casa. Perto das 10h30, sai pelo portão lateral. Passa pelas livrarias do Chaim e do Elotério, cujo proprietário, Elotério Borrego de Oliveira, tornou-se amigo e confidente. Almoça às 11h30 no restaurante vegetariano All Natura, no centro da cidade. Senta sempre nos fundos. Paga o almoço com tíquetes e segue para o Citibank. De lá vai ao Mercadorama. Na rua XV, passa pela Schaffer para uma coalhada ou um chá com torradas. Na livraria Ghignone, prosa com o José Ghignone. Vai à banca de jornal.
Tímido e hipocondríaco, Dalton sempre zelou pela imagem e o alcance da obra. Em 1953, começou a imprimir contos em cordel., edição limitada a 200 exemplares. Distribuia para críticos, escritores, amigos. Tentava uma editora. Começou a frequentar o ciclo intelectual de São Paulo. Cassiana Lacerda revela que o contista ostentava na parede do escritório o diploma de bacharel em direito e um bilhete de Carlos Drummond de Andrade. "Que delícia uma revista cuja redação é na Rua Emiliano Perneta 476 e que promete publicar, em seu segundo número, um artigo sob o título Emiliano, o poeta medíocre". A pesquisadora diz que Dalton levava para a biblioteca pública recortes com reportagens sobre ele e obra publicadas no mundo. O contista defendeu a publicação de teses sobre o próprio trabalho, como Do Vampiro ao Cafajeste, de Berta Waldman, ou Dalton Trevisan: a Trajetória de um Autor que se revê, de Rosse Bernardt.
Dalton Jérson nunca gostou muito de música, à exceção dos antigos e populares como Orlando Silva e Vicente Celestino. Detesta poluição sonora e visual, comida americanizada, shopping center. Gostaria muito de voltar à Europa. Adora comédia, bangue-bangue, macarrão, peixe e vinho. Quando lá estivemos, preparava um conto, Pico na Veia. Domina a cena literária sem influenciar diretamente a produção local. Despreza tanto a obra de Emiliano Perneta quanto a de Paulo Leminski, poetas curitibanos, o último de expressão nacional. Fala e lê inglês, francês, espanhol. Esqueceu o alemão.
Bastante conhecido em Curitiba, há quem duvide de sua existência na cidade, por onde caminha diariamente de jeans, boné, jaqueta e par de tênis surrado. Odeia barulho, mas mora numa esquina ruidosa, na Rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da Glória, na casa acidentetada onde ninguém ousa bater.
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*Cláudio Renato Passavante é repórter, editor e produtor (15. prêmios de Jornalismo, dois Esso), produz e edita o programa de Miriam Leitão, na GloboNews há 12 anos Trabalha na Rede Globo desde 2002.
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