Guarulhos, 01 de maio de 2023.
Luzimar Soares*
No ano de 2018, enquanto cursava uma matéria para obtenção de crédito e, por conseguinte, para ter continuidade no curso de Mestrado, fui apresentada a um livro que me fez refletir muito sobre a história do país e sobre como essas alterações históricas imbricam-se nas vidas privadas.
O livro em questão é uma obra de Darcy Ribeiro (1985) – Aos Trancos e Barrancos: como o Brasil deu no que deu. Replicarei aqui um dos primeiros parágrafos da obra, trecho em que ele enaltece a terra e o povo e deixa muito clara a sua crítica aos governantes.
Não me consolo de constatar todo dia que o Brasil não deu certo. Ainda não deu certo. Não por culpa da terra, que é boa, nem do povo, que é ótimo. Mas das nossas classes dirigentes, tão tenazmente tacanhas que só sabem gastar gente a fim de lucrar e enricar. Para isso sojigaram e mataram milhões de índios, estancado sua alegria de viver e corrompendo sua admirável adaptação ecológica à nossa terra. Para isso caçaram em África, trasladaram para cá e aqui consumiram, queimados no trabalho escravo, dezenas de milhões de negros.
A narrativa de Darcy Ribeiro está carregada de suas pesquisas e, também, do momento histórico que vivia. Ele fez um apanhado dos fatos históricos ocorridos de 1900 a 1980, elencando, dentre tantas outras coisas, cada homem que ocupou a presidência da república e o tempo de duração, entrelaçando a isso acontecimentos culturais, curiosidades do mundo; e elevando, a cada ano, uma personalidade, uma descoberta, seja no mundo da ciência tecnológica, seja no da saúde, da literatura, etc.
Darcy Ribeiro (1922-1997).
Crédito da imagem: Instituto de Estudos Avançados da USP.
A leitura dessa obra suscita vários pensamentos. Ela começa em 1900, quando, historicamente, estávamos enquanto sociedade em ebulição total. O começo da década foi marcado, especialmente na capital do país – Rio de Janeiro, por grandes reformas estruturais na geografia da cidade. Essas reformas físicas estavam cheias de pensamentos hegemônicos que visavam o embelezamento da cidade, inspirada em reformas urbanas acontecidas em países europeus.
A mentalidade vigente naquele momento e a ideologia dos governantes estavam impregnadas do pensamento eugenista, pensamento este que buscava o embranquecimento da população e a culpabilização dos mais pobres pelo não desenvolvimento da sociedade. As reformas urbanas expulsaram, literalmente, muitas pessoas de suas moradias, o que as obrigou a encontrarem novos lugares para residirem. Esse é um dos grandes motivos que provocaram alteração no lugar de residência. É a vida privada sendo decidida pela vida pública.
Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Darcy Ribeiro, Guanabara, 1985.
Crédito da imagem: Facebook Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu
Essas alterações que acontecem na sociedade criam mudanças nos espaços geográficos e na densidade demográfica dos lugares. As periferias das grandes cidades foram estimuladas por reformas urbanas, especulações imobiliárias, queda do poder aquisitivo, grandes migrações (sejam internas ou externas). Sem nenhum planejamento público ou política pública de moradia, as pessoas foram ocupando lugares e buscando sobreviver nas periferias após serem desabrigadas dos centros das grandes cidades.
As mudanças na economia nacional impactam diretamente na vida particular. As pessoas com menor poder aquisitivo acabam se mudando de residência para conseguirem manter suas vidas economicamente. Além disso, as migrações regionais contribuem para as alterações dos mapas demográficos. No Brasil das décadas de 1960 ̸ 1970, aconteceram muitas transfigurações. Uma das grandes estudiosas do assunto, Raquel Rolnik (2015, p. 265), afirma que:
Se, por um lado os espaços que se constituíram nos anos do grande crescimento urbano (1960 ̸ 1970) são hoje dotados de água, luz, equipamentos públicos e espaços comerciais, por outro, uma nova geografia da pobreza e da vulnerabilidade social, muito mais heterogênea e complexa, define o “lugar dos pobres” na cidade, um grupo social também mais heterogêneo.
Todas essas reordenações econômicas, sociais e políticas criam, também, espaços de pertencimentos. Existe uma busca por identificação com o lugar onde se vive, causada por uma infinidade de fatores, sejam eles de afeto, de posição social, de proximidade com o trabalho, ou, até, de manutenção da vida cotidiana. Ou seja, muitos se mudam para lugares mais afastados movidos pela necessidade de se sustentarem.
Os motivos que levam as pessoas a mudarem de residência são os mais distintos quando se trata das motivações pessoais, seja por razão familiar, profissional, ou ainda, de ascensão social. Muitos querem pertencer a determinados bairros, pois isso lhes atribui a alcunha de morador deste ou daquele lugar. Para Gilberto Velho (1973, p. 89), que estudou Copacabana, existe uma identificação com o prestígio social que o lugar oferece.
Falei que não defenderia uma teoria “conspiratória” para explicar o crescimento de Copacabana e quero insistir nisso. A criação do mito “Copacabana”, assim como “Ipanema” ou “Barra” só é possível em um tipo de sociedade em que exista uma identificação entre local de residência e prestígio social, de tal forma acentuada que a simples mudança de bairro possa ser interpretada como ascensão social, mesmo não havendo alterações na ocupação ou na renda das pessoas em pauta.
Seja por razões sociais, políticas, econômicas, estruturais, familiares, trabalhistas, as mobilidades alteram os espaços sociais e geográficos, criam ou desfazem laços, aproximam e afastam pessoas, acirram ou arrefecem as disputas, marcam lugares de pertencimentos, excluem e incluem, modificam também a arquitetura do lugar. Essas mudanças, ainda que até o momento tenham sido pouco estudadas, são muito importantes para compreender as sociedades.
Independentemente das motivações, muitas pessoas têm necessidade de mudanças, ou preferem não criar “limo” nos locais onde residem, mudam-se sem muitas dificuldades. Motivados por questões familiares, de trabalho, sociais ou de saúde, essas movimentações precisam de estudos, inclusive, para que os governantes citados por Darcy Ribeiro compreendam as necessidades de seu povo e criem políticas públicas adequadas para suprir as necessidades e possibilitem que o grande sonho do estudioso se concretize. Para ele:
No dia em que todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver um primeiro grau completo, quando cada homem e cada mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela desse mundo. É tão fácil; estendendo os braços no tempo, sinto na ponta dos dedos esta utopiazinha nossa se realizando.
Eu acrescento a esse sonho: no dia em que cada mulher e cada homem tiver um Teto, certamente esse será um Brasil melhor.
Referências:
RIBEIRO, Darcy. Aos Trancos e Barrancos; como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara dois, 1985.
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2019.
VELHO, Gilberto. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1973.
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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