Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 2022.
Luciene Carris*
Recentemente, recebi a recomendação de um livro cujo título me envolveu com intensa curiosidade, pois revela um olhar feminino sobre as cidades ou melhor olhares. O fato de ter escolhido a cidade, que me recebeu quando bem jovem, bem como ter se tornado o objeto das minhas atenções e de recentes estudos, tem me levado a conhecê-la mais de perto, in loco, quando assim é possível apreender a sua essência, bem como buscar leituras sobre o tema: a cidade na história. A natureza exuberante contribuiu para que a cidade do Rio de Janeiro fosse e seja cantada, narrada, poetizada por tantas figuras interessantes ao longo da história. Considero nem tão maravilhosa assim, mas “o purgatório da beleza e do caos”, recuperando aqui a célebre letra da composição de Fernanda Abreu.
Crédito da imagem: Wix.
A dialética entre a memória e o esquecimento, entre aquilo que guardamos, registramos, e aquilo outro que escondemos, ignoramos e selecionamos contribui para nos transformar em seres nostálgicos e complexos, pois se mistura com o campo dos afetos e das sensibilidades. O processo seletivo da memória é bem examinado pelo sociólogo Maurice Halbwachs, que revelou como a memória individual não está dissociada da memória coletiva, afinal o indivíduo é o resultado das interações sociais. Independente do nosso desejo do isolamento, a linguagem se insere no universo das relações humanas, enfim, somos seres sociais, quer queiram ou não.
Pois bem, já revelei em ocasião anterior "Corpo e alma do nordeste", que sou uma “carioca meio nordestina” ou uma “nordestina meio carioca”. Não sei bem como afirmar este sentimento, a minha relação com a cidade do Rio de Janeiro é complexa. Guardo recordações, alguns flashes é bem verdade, de uma tenra infância em um determinado sítio no interior do agreste paraibano. Não raro ainda recupero uma outra insólita imagem da casa sendo alagada em algum lugar do Rio de Janeiro em razão de uma chuva torrencial, o que não é nenhuma novidade, pois é uma realidade compartilhada entre brasileiros do nosso vasto território.
Voltando ao livro que me trouxe essa aguçada curiosidade, sem mais delongas vou ao cerne da questão. A escolha do título pela escritora novaiorquina Laura Elkin não foi aleatória: Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. Considero que deve ser um livro a ser lido e relido ao lado de outras leituras indispensáveis sobre estudos urbanos. A originalidade parte do curioso título e da fácil leitura proporcionada por ágil escrita envolvente. Indago-me como uma mulher pôde e pode flanar pela cidade, sendo incógnita, desconhecida, invisível, como O homem na multidão de Edgar Allan Poe, cuja passagem interessante pode inspirar outras interessantes reflexões:
De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica (POE, 1840).
Ou ainda, como uma mulher poderia descrever a cidade do Rio de Janeiro no alvorecer do século XX como tão bem a descreveu o famoso cronista da cidade João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto:
O flâneur é ingênuo quase sempre. Para diante dos rolos, é o eterno “convidado do sereno” de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga ideia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio (RIO, 1908, p. 03).
“Flanar com inteligência” é uma das frases que me vem a memória sobre João do Rio, pois é recuperada pelo historiador Antonio Edmilson Martins Rodrigues, também um flanêur e biógrafo do famoso cronista João do Rio, como apontei em outra oportunidade "Quando um historiador se tornar um biógrafo". E assim, surgiu a Laura Elkin como uma jovem flanêuse, uma estudante de literatura em Paris, que passou a vaguear pelas ruas em volta da sua faculdade. O interessante é que não existe o substantivo feminino em francês de flâneur. De acordo com a escritora, “os dicionários franceses nem trazem o vocábulo”, e no dicionário a palavra remete a uma espreguiçadeira. Apesar disso, o uso da expressão se popularizou como uma gíria por volta de 1840.
O fato é que as mulheres frequentavam e frequentam as ruas das cidades, apesar das restrições e dos costumes sociais, e da exclusão da história das cidades, bem como das dificuldades impostas pela mobilidade urbana como a falta de segurança. As mulheres das classes trabalhadores circulavam pelas ruas, enquanto as mais abastadas usufruíam de espaços exclusivos como cafés e lojas onde poderiam adquirir produtos extravagantes e de luxo. A obra de Laura Elkin mistura suas memórias pessoais e o gosto pela história cultural, o ponto de partida são as artistas e as escritores selecionadas pela escritora como Jean Rhys, Virginia Woolf, Sophie Calle, Martha Gellhorn e George Sand. Aliás, George Sand é o pseudônimo masculino de Amandine Aurore Lucile Dupin, considerada uma das maiores escritoras francesas, que se destacou pela vasta obra produzida e pela possibilidade de viver financeiramente da sua arte, a arte da escrita.
De todo modo, as reflexões apontadas pela autora me incentivaram a pensar sobre o direito à cidade. É inegável que a cidade é o lugar de reprodução de desigualdades sociais, econômicas, espaciais e ambientais. Para as mulheres, o medo e a vulnerabilidade nas ruas permanecem como fatores, que segregam, excluem ou limitam a mobilidade. No atual momento de retomada de políticas urbanas na cidade e de reflexões sobre o direito à cidade, lembrando aqui expressão originalmente cunhada pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre em 1968, o direito à cidade não deve ser limitado a um projeto urbanístico. Quem sabe assim, as flanêuses e as cronistas femininas da cidade, e demais mulheres e outros grupos (LBGTQI, negros) possam circular livremente e, quem sabe, trazer contribuições singulares e importantes, e possam se apropriar de fato do espaço urbano, pois como apontou David Harvey:
(...) O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar acidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização (HARVEY, 2014, p. 28)
Referências:
ELKIN, Luaren. Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2022.
HAlBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4005834/mod_resource/content/1/48811146-Maurice-Halbwachs-A-Memoria-Coletiva.pdf Acesso em: 10 ago. 2022.
HARVEY, David. CIDADES REBELDES: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
POE, Edgard Alan. O homem na multidão. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4648396/mod_resource/content/1/homem_multidao.pdf Acesso em: 01 dez. 2022.
RIO, João do Rio. A alma encantandora das ruas. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000039.pdf Acesso em: 01 dez. 2022.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Muito bom o texto! Fiquei me perguntando se Maria Graham poderia ser considerada uma flaneuse no Rio do século XIX... Ainda que seu caminhar não fosse "livre" (imagino que uma dama de companhia da Imperatriz não poderia se "perder" na urbe), sua capacidade de observação e curiosidade poderiam aproximá-la da categoria, não?