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  • Foto do escritorRenan Augusto Moraes Conceição

Não à Privatização das Praias no Brasil!


São Paulo, 18 de julho de 2024.

Renan Augusto Moraes Conceição e Angela Teberga de Paula*



Fonte: imagem gerada por IA.



Avança a investida neoliberal de privatização dos espaços públicos no Brasil. O alvo da vez são as praias e todas as áreas adjacentes a lagos e rios, que atualmente pertencem ao Estado. Proposta de emenda à constituição objetiva permitir a transferência de terrenos da União a agentes privados.

 

O Acesso Livre Aos Espaços Naturais no Brasil

 

Diferentemente do que acontece em alguns países, principalmente alguns de forte apelo turístico, como a Itália, onde ocorreu intenso processo de privatização a partir dos anos 1960, no Brasil, as praias e todas as áreas adjacentes a rios e lagos são de propriedade do Estado, sendo responsabilidade da Marinha zelar por esses espaços bem como fiscalizar usos irregulares, cercamentos, bloqueios e qualquer outra forma de inviabilizar o acesso público a esses locais naturais. A Constituição Federal de 1988 garante que, contado a partir do nível mais elevado da água, uma faixa de 33 metros pertence à União. Isso não significa, porém, que o uso dessas áreas seja vedado e que não possam ser exploradas economicamente, desde que permitidas pelos órgãos ambientais e de fiscalização.



Fonte: Portal UOL.


Tendo em vista a extensão da linha costeira do Brasil e o tamanho do país, o trabalho da Marinha em fiscalizar enfrenta desafios grandiosos. Existem milhares de construções ilegais que fecham o acesso a praias, sendo, também, um enorme risco ambiental, uma vez que ignoram legislações de proteção ao meio ambiente. Ainda assim, o brasileiro conhece seus direitos de livre circulação e acesso gratuito a esses espaços, e o cercamento de praias sempre sendo noticiado e fiscalizado por entidades da sociedade civil e ministérios públicos.

 

A Proposta de Emenda à Constituição

 

No entanto, um recente projeto de emenda à constituição federal de 1988, que propõe a transferência dessas áreas para entidades privadas que ocupam esse espaço, para estados e para municípios, têm avançado no Congresso Nacional. Trata-se da PEC 03/2022, proposta pela Câmara dos Deputados e que encontra-se, nesse momento, em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, sendo relatada pelo senador Flávio Bolsonaro. O projeto, por sua vez, foi inicialmente apresentado em 2011 e, no decorrer de sete anos, ou seja, até 2018, passou por muitas comissões especiais criadas para debater a proposta, um arquivamento, um desarquivamento, e sucessivos pedidos de prorrogação de prazo entre 2017 e 2018, além da realização de algumas audiências públicas para debater o tema e aglutinar propostas semelhantes que foram apresentadas após 2011.

 

Foi a partir de 2019 que a PEC passou novamente a ter encaminhamentos mais incisivos. Com toda a tramitação anterior, que foi incorporando emendas de propostas semelhantes, a PEC tomou forma como uma possibilidade de transferência de terras públicas para agentes privados, tornando-se uma ameaça ao uso livre dessas áreas. Em 2022, logo no início do último ano do governo de Jair Bolsonaro, a PEC teve discussão no Plenário da Câmara dos Deputados, materializando-se, definitivamente, o que antes aparecia apenas como uma ameaça. Partidos como o PT e PSOL apresentaram uma série de requerimentos para a retirada de pauta, adiamento de votação e uma série de formas que poderiam retardar a decisão sobre a PEC, que foram efusivamente rejeitados pelo plenário. A PEC foi votada e aprovada em duas sessões e, sem demora, enviada para tramitação no Senado Federal.





Nesse cenário, do quê, exatamente, se trata essa proposta? O texto da PEC estabelece que os terrenos da Marinha passarão a ter propriedade diferente da seguinte forma: 1 - continuam sob domínio da União em casos de existência de serviços públicos; 2 - passam para controle dos estados e municípios as áreas em que serviços públicos estaduais e municipais funcionam; 3 - passam para propriedade dos ocupantes dos terrenos, sejam eles inscritos ou não nos órgãos de gestão do patrimônio. A transferência dessas áreas ocorrerá de duas formas: 1 - gratuita, nos casos de transferência para estados e municípios; 2 - onerosa, nos demais casos.

 

No entanto, a transferência onerosa, ou seja, que envolve a cobrança de algum valor ainda a ser determinado para que os agentes privados oficializem a posse do terreno, terá desconto dos valores já pagos por esses agentes nos últimos cinco anos em razão de taxas de ocupação ou foros fundiários, que são um valor pago pelos agentes privados para uso desses terrenos. A depender de como esse ponto será regulamentado após uma possível aprovação da PEC, a transferência a agentes particulares pode ser com o pagamento de valores irrisórios e, como não seria de estranhar em um modelo político de neoliberalismo, não se pode descartar a chance de que o Estado ainda precise pagar para esses agentes privados.

 

É importante ressaltar que esse tema foi uma das obsessões do governo de Jair Bolsonaro, que pretendia transformar uma certa região costeira do estado do Rio de Janeiro numa espécie de Cancun brasileira, permitindo que resorts e hotéis pudessem explorar como quisessem uma faixa do litoral, cobrando acesso e, segundo o ex-presidente, fomentando o turismo. Dessa forma, a existência de uma PEC em estado avançado de tramitação na Câmara dos Deputados foi totalmente ao encontro dos anseios do ex-presidente. Uma vez transferidas a agentes particulares, que podem usufruir como bem entenderem de suas propriedades, atrelado ao enfraquecimento dos controles ambientais advindos do projeto, o cenário idealizado por Bolsonaro pode se concretizar.

 

Além de ser uma das propostas do ex-presidente - aliás, uma das únicas ideias apresentadas por ele na área do turismo -, esse tema também interessa a grandes capitalistas do ramo hoteleiro. Empreendimentos como resorts de praia, condomínios de luxo, casas particulares, entre outros, são, a princípio, os maiores beneficiados de uma transferência de propriedade. Há até projetos de transformação de 100 quilômetros de praias entre os estados de Pernambuco e Alagoas, no nordeste brasileiro, que prevê a construção de 28 imóveis de alto padrão, projeto esse que conta com apoio do jogador de futebol Neymar Júnior.

 

Os Problemas e Interesses Ocultos da PEC

 

Os defensores da proposta de emenda à constituição argumentam que a mudança não acarretará nenhum ônus para a população. O senador Flávio Bolsonaro, relator da proposta no Senado, em defesa da PEC, tem adotado discurso contraditório. Em um primeiro momento, afirmou que a PEC não trata sobre privatização nenhuma. Posteriormente, em entrevistas, afirmou que a intenção é passar para o setor privado, que não irá fechar o acesso às praias. Fica explícito que a repercussão pública sobre o assunto causou problemas para os interessados na aprovação da proposta.

 

De fato, a PEC não coloca abertamente o assunto das privatizações das praias. No entanto, não é preciso que se expresse de forma escancarada esse termo. A simples transferência dos terrenos da União para estados e municípios já abre uma série de brechas para que essas áreas sejam simplesmente dadas gratuitamente a agentes privados que tenham boas relações com os governantes locais. As esferas estaduais e municipais do poder público no Brasil, inclusive, são bastante conhecidas pela grande permissividade e pelos acordos espúrios em relação a assuntos como questões fundiárias, meio ambiente, proteção social. No âmbito dos municípios, não é incomum que quem ocupa a prefeitura e a câmara de vereadores seja alguém com interesses nas áreas de proteção ao meio ambiente.  Um exemplo evidente dos problemas decorrentes dos afrouxamentos de legislações estaduais e municipais foi o que ocorreu no estado do Rio Grande do Sul, com as enchentes que devastaram boa parte do estado.

 

Os argumentos de que a PEC irá trazer “segurança jurídica” (um jargão muito utilizado no Brasil nos últimos anos, que significa na prática desregulamentação e afrouxamento de leis, beneficiando o poder privado, com a “máscara” de uniformidade legislativa para situações em que há dissonância de interpretação) e que também criará oportunidades de desenvolvimento turístico, trazendo renda a comunidades carentes, são grandes falácias. No Brasil, a desregulamentação e a destruição de leis ambientais, na verdade, só prejudicam turistas e trabalhadores da área, pois passam a permitir todo tipo de abuso e arbitrariedade por parte de agentes privados. Praias privativas só beneficiam os proprietários, que não permitiriam que uma série de trabalhadores informais do turismo, como vendedores ambulantes e prestadores de serviços, tão comuns no litoral brasileiro, pudessem trabalhar. Além disso, o acesso às praias mediado por uma propriedade qualquer representa um golpe ao livre acesso da população às áreas de lazer, e portanto elitizando um bem público que historicamente já é frequentado por classes sociais mais ricas, a despeito de serem públicas. Não é incomum verificar “cercadinhos” nas praias brasileiras, feitos com ou sem o aval do governo, para acesso privilegiado de alguns poucos turistas. Ou, em situações mais absurdas, já vimos turistas mais pobres serem achincalhados publicamente por frequentar esses espaços.

 

Mesmo com a Constituição Federal vetando a apropriação privada dessas áreas públicas, é comum que muitos empreendimentos dificultem o acesso público a esses espaços. A simples construção de casas de veraneio, como a do apresentador e eterno candidato à presidência da república Luciano Huck, é exemplo dos diversos bloqueios que esses empreendimentos causam, bem como dos crimes ambientais que o capital comete ao forçar a exploração e uso dessas áreas. No governo Bolsonaro, o próprio ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, atuou para que a legislação ambiental fosse totalmente destruída, causando danos que ainda são pouco conhecidos a longo prazo.



Fonte: Jornal GGN.



Embora a PEC não seja de autoria do governo Bolsonaro, ela se alinha a interesses pessoais da família do ex-presidente. O próprio senador Flávio Bolsonaro tem travado uma batalha judicial contra o jogador de futebol Richarlison para ocupar uma ilha em Angra dos Reis. A possível aprovação da PEC passaria, em definitivo, a propriedade da ilha ao senador, escancarando a suspeição de sua relatoria sobre essa proposta, o que deveria fazê-lo se declarar impedido de legislar sobre o tema. Além de Flávio Bolsonaro, outros senadores também se beneficiariam da aprovação da PEC, como Alessandro Vieira, Ciro Nogueira, Esperidião Amin, Fernando Dueire, Jader Barbalho, Laércio Oliveira, Marcos do Val, Oriovisto Guimarães e Renan Calheiros.

 

Aliado a essa PEC, um projeto de lei avança no Senado, já tendo passado pela Câmara dos Deputados: a legalização dos jogos de azar, como bingos, jogo do bicho e cassinos. Esse projeto já tramitou, inclusive, na Comissão de Turismo da Câmara, tendo parecer positivo pela sua aprovação. Com um litoral tão vasto como o brasileiro, a junção de transferência de terrenos públicos para agentes privados com liberação de jogos de azar como cassinos pode produzir um efeito de cercamento de extensas faixas de areia, em empreendimentos hoteleiros do tipo hotel cassino, similares ao que existe em Punta del Este, no Uruguai, e como já existiu no Brasil nos anos 1940 e 1950.

 

É imperativo que a sociedade e os movimentos sociais passem a observar com mais intensidade as atividades parlamentares. Uma série de projetos de lei e emendas à constituição, flagrantemente anti-democráticas e danosas ao bem público, são apresentadas e votadas sem enfrentar resistência ou constrangimento aos parlamentares que as apoiam. O neoliberalismo se utiliza de ferramentas democráticas, como pretensamente se apresentam as comissões fixas do Congresso Nacional, e também dos mandatos parlamentares, uma função pública por natureza, para desmontar as estruturas públicas do Estado, enfraquecer políticas públicas e, como consequência, retirar direitos historicamente conquistados.

 

Não à PEC 03/2022!



O artigo foi originalmente publicado no blog “Labor Movens - Condições de trabalho no turismo”, que é um Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão, vinculado ao Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília

(CET/UnB).


Conheça o Labor Movens: https://www.labormovens.com/.



*Renan Augusto Moraes Conceição é Doutorando em Turismo pela EACH/USP – Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. Mestre em Comunicação pela UEL – Universidade Estadual de Londrina (2019). Especialista Marketing e Gestão de Pessoas pela INBRAPE-FECEA (2011). Bacharel em Turismo pela Faculdade Estadual de Ciências Econômicas de Apucarana – FECEA (2009). Pesquisado do Labor Movens – Grupo de Estudos e Pesquisas em Condições de Trabalho no Turismo, vinculado à UnB / CNPq. Possui experiência nas áreas de turismo, hotelaria, marketing e agências de viagens, já tendo trabalhado em diversos hotéis, agências de viagens e  também hotelaria hospitalar.  


*Angela Teberga de Paula é Professora no Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (CET/UnB). Doutora em Turismo e Hospitalidade pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre em Turismo pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Turismo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Guia de Turismo Regional - DF, Nacional e América Latina (CADASTUR). Pesquisadora da Alba Sud (Barcelona/Espanha). Líder do Grupo Labor Movens. Grupo de Estudos e Pesquisas em Condições de Trabalho no Turismo (UnB/CNPq). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas para o Trabalho (GEPT/UnB/CNPq). Membro da Aliança para a Formação e a Investigação em Turismo Social e Solidário - ISTO (International Social Tourism Organisation). Trabalha com os temas: trabalho no turismo, turismo e escravidão contemporânea, turismo social, turismo e inclusão social.

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