Ponte Nova, 01 de janeiro de 2022.
Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto*
O fim de ano chegou! As promessas, as retrospectivas anuais e as diferentes emoções são capturadas de uma forma única. É neste contexto que este texto foi escrito e parte de suas reflexões são parcialmente concluídas. Digo parcialmente, porque tenho menos certeza do que tinha semanas atrás e terei menos ainda quando este ano findar.
Crédito: wix.
Há pelo menos 6 anos venho pesquisando os movimentos homossexuais na América Latina, com foco especial no Brasil, na Argentina e recentemente na Colômbia e México. Embora sejam temas que recortem meu processo de humanização, elas também são parte da minha formação como historiador. Estas pesquisas são fruto da investigação ininterrupta que se iniciou na graduação, passou pelo mestrado e agora pelo doutorado.
Deste modo, é impossível não tomar algumas questões como pertinentes ao nosso tempo. Sou um historiador gay fazendo história LGBTQIA+ no Brasil e todas estas camadas são o suficiente para transmitir uma ideia dos desafios, das quebras, dos desencontros, mas também das ternas surpresas que tomam o meu fazer historiográfico.
Se em 2020 a emoção regente de nosso ano pôde ser compreendida como o MEDO. O ano de 2021, ao contrário, nos serve uma gradual modificação dos sentimentos de uma sociedade brasileira. Isto é, abandonada às revelias do neoliberalismo e do jogo necropolítico colocado pela duvidosa reação do governo brasileiro ao avanço da pandemia. Como o ato de escrever história é interrogar-se em pelo menos três tempos, passado, presente, futuro, é neste contexto que volto a questão de um importante intelectual queer à filosofia contemporânea. Quem protege as crianças queers? Quem defende as crianças queers?
Estas são duas discussões que atravessam parte da obra de Paul B. Preciado, um terrorista de gênero, que não só desloca as noções da construção de sua própria identidade como rearticula uma análise sobre um novo tempo. Um novo momento em que as técnicas e tecnologias do gênero se aperfeiçoam sob o contexto histórico do neoliberalismo, o tempo farmacopornográfico.
Este novo tempo é inaugurado a partir das consequências da Segunda Guerra Mundial e da escalada do capitalismo em um prisma global. Este contexto, possibilitou a consolidação de identidades e aqui no Brasil o historiador pirotécnico Elias Ferreira Veras conseguiu capturar parte da construção deste novo tempo histórico.
Se até aqui dei ênfase no tempo farmacopornográfico, foi porque eu quis viabilizar uma leitura sobre a conjugação daqueles tempos históricos. As condições sócio-históricas que viabilizaram o surgimento dos movimentos homossexuais e o engrossar do caldo das identidades de gênero e sexualidades dissidentes a heteronorma. Esta última, é uma constatação histórica de que os comportamentos e as normas socioculturais no Ocidente cristalizaram-se a partir de uma percepção única dos corpos e das identidades passíveis a tornarem-se dignas de serem humanas.
Esse corpo não é anômalo! Pelo contrário ele é a soma dos recortes que viabilizam diferentes lógicas de opressão que ora podem ser vistas separadamente, ora podem ser interpretadas de modo entrecruzado. No mundo ideal a heteronorma é exemplificada pelo homem cisgênero, heterossexual, branco, sem deficiência. Estes e outros elementos configuram em um imaginário social, aquilo que é colocado como bom comportamento, boas práticas e boa moral.
As sujeitas/es que compõem as dissidências a essa norma pagam caro porque são lidas como inferiores e como menos humanas. Isto é, menos dignas da condição de humanidade. O que quero dizer é que se entendemos a existência deste novo tempo e respectivamente a persistência desta norma, nós nos vemos em um jogo complexo e perigoso quanto as possibilidades de futuro.
Comecei este texto trazendo a necessidade de pensar o contexto atual porque é no presente que as aspirações de futuro se colocam. Deste modo, se a possibilidade de se tornar humano é menor a cada fuga de um dos elementos que compõem a heteronorma, o que está sendo feito de nossas crianças queers? Quais são as perspectivas de futuro que estas podem vir a ter? Em algum ponto, estas chegarão a ser consideradas humanas?
Bom, muitas/es de vocês podem perceber que apesar dos pesares os últimos 40 anos foram cruciais para o início e para a consolidação de alguns dos direitos básicos à população LGBTQIA+. Como registrou João Silvério Trevisan, na última edição de Devassos no Paraíso, houve avanço, mas também houve o aumento dos crimes por homolesbotransfobia. Ao passo em que alguns direitos foram conquistados, uma agenda anti-LGBTQIA+ foi devidamente instaurada pela ascensão de uma política de extrema direita que figura o imaginário político brasileiro desde os partidos de Centro Direita até às personalidades que ocupam cargos de extrema importância no governo brasileiro, como é o caso da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, assim como também do atual presidente Jair Messias Bolsonaro.
Em uma arena política mais violenta, as condições de vida e também as projeções sobre o futuro não são positivas. A espera das lideranças e da mudança de um panorama do cenário atual, as vidas são ceifadas, a vulnerabilidade social se espalha e o futuro volta a ser tema recorrente em nossas conversas de bar, em nossa sensação de insegurança e em nossa capacidade de exercer um papel efetivo de transformação social. Do ponto de vista histórico, a política de alianças e a solidariedade das quais falam respectivamente Judith Butler e Angela Davis, colocam-se como elementos indiscutíveis na percepção do que poderá ser o nosso futuro e de como no presente podemos inventar ações políticas que alterem o nosso quadro de condição não tão humana.
É claro, existem particularidades das quais este texto não dá conta, nem tampouco se propõe a analisar. O que parece, é que nossa experiência do tempo presente faz com que a pergunta de Paul B. Preciado se mantenha atual. Quem defende as crianças queers? Talvez, aproveitando a política das emoções mobilizadas tradicionalmente no Brasil em dezembro e janeiro, seja colocada a necessidade de refletirmos. O que você faz por uma criança queer? Como você contribui para que nós possamos ter vidas vivíveis?
*Rhanielly Pereira do Nascimento Pinto é doutorando em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisador do grupo ANÔMALOS-UFCAT e Editor da Revista Anômalas. rhanielly0884@gmail.com
Referências:
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
ELIAS FERREIRA VERAS. TRAVESTIS : carne, tinta e papel. [s.l.] Appris, 2020.
PRECIADO, P. B. Testo junkie sex, drugs, and biopolitics in the harmacopornographic era. [s.l.] New York, N.Y. Feminist Press, 2017.
ROBINSON, B. A. Heteronormativity and Homonormativity. The Wiley Blackwell Encyclopedia of Gender and Sexuality Studies, p. 1–3, 21 abr. 2016.
TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Max Limonad, 1986.
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