Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 2025.
Cláudio Renato Passavante*
O segredo está guardado, delicadamente, no sétimo andar do Edifício Alcazar, construído na década de 1930, na pequenina rua Almirante Gonçalves 4, em Copacabana, ao lado do botequim Bip Bip. Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda completará 100 anos em 25 de janeiro de 2010. Ela garantiu, com temperamento estoico e simplicidade franciscana, a união e a prosperidade intelectual da família Buarque de Hollanda, que, aliás, nem Buarque de Hollanda seria, se não fosse por um capricho do sogro, Cristóvão, que decidiu encurtar e modificar o sobrenome Paes Barreto Hollanda Cavalcante Buarque de Gusmão. O pernambucano Cristóvão Buarque de Hollanda é pai do paulista Sérgio Buarque de Hollanda e avô do carioca Chico Buarque de Hollanda. Na família, o único sobrenome registrado com apenas uma letra l é o da irmã caçula de Chico, Maria Christina, por um equívoco cartorário.
Austera e sensível, Maria Amélia trabalhou à moda antiga para perpetuar a família. Ajudou nas pesquisas e datilografou os originais do clássico Raízes do Brasil (1936). Viajava de trem com os filhos, na ponte ferroviária Rio-São Paulo, ensinava-lhes a cantar sambas, frequentava com eles o Maracanã e até participava de coros em gravações. Para quem não sabe, a voz de Maria Amélia está ao fundo de O Meu Guri, no registro de Cristina Buarque, anterior ao disco Almanaque, de Chico Buarque (1981). Raras vezes precisou pôr os pés fora de casa para receber o carinho incondicional dos sete filhos, 14 netos, 13 bisnetos, intelectuais, compositores, poetas e políticos. Em comum com a musa do saudoso amigo Mario Lago, a Amélia em questão desdenha luxo e riqueza. É um ser alegremente monástico em cujo templo se aceitam, eventualmente, uma cachacinha, um chope, e manifestações entusiasmadas a favor da Mangueira e do Fluminense.
É aconselhável, no entanto, que não se chame a viúva do historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) de dona Amélia. É gafe imperdoável. O telefone emudece, a conversa murcha, ela fica uma fera. Não se sabe bem a razão. Pelo o que diz a todos, é a sonoridade do nome que a incomoda. Ela jura que tal ojeriza nada tem a ver com Ai, que saudades da Amélia, a canção composta em 1941 por Mário Lago e Ataulfo Alves para Amélia dos Santos Ferreira, morta pela pneumonia, aos 91 anos, em 27 de julho de 2001. Amélia, a musa do clássico, fora empregada da cantora Aracy de Almeida (1914-1988).
Quando faz reservas em restaurantes, a mãe de Chico Buarque é lacônica. Ela pede "uma mesa para a dona Maria" ou, no máximo, "para dona Maria Buarque." Gosta mesmo é do apelido Memélia, inventado pela neta Bebel Gilberto, filha da primogênita Heloísa Maria, a Miúcha, com o cantor e compositor João Gilberto.
Bebel, nascida em Nova York, há 43 anos, viveu pedaço da infância - dos 5 aos 8 anos - com os avós na rua Buri 35, no Pacaembu, em São Paulo, no casarão em frente ao qual está hoje a praça Raízes do Brasil. Na época, os pais de Bebel viajavam pelos Estados Unidos e o México. Jamais os netos trataram Maria Amélia e Sérgio como "vovó" e "vovô." Foi Bebel, xodó da casa, quem também criou o apelido familiar de Sérgio: Papioto, corruptela de "papai outro", como ele preferia ser chamado por todos os netos.
Às vésperas do centenário de Sérgio Buarque de Hollanda, em 2002, telefonamos para Chico Buarque. Queríamos falar sobre a mãe dele, a cara-metade do autor de Visões do Paraíso. "Mamãe sabe? Você contou pra ela? Ih, ela não vai gostar nem um pouco dessa história," advertiu. Era bem possível. Dona Maria Amélia, metro e meio de altura, não tem a menor vaidade, nunca pintou o cabelo e só faz concessão a um batonzinho. Hesitante, Maria Amélia concordou em falar conosco, depois de muita insistência de uma das filhas, Ana de Hollanda, hoje vice-presidente do Museu da Imagem e do Som (MIS). "Acho meio ridículo uma mulher da minha idade ficar se exibindo", dizia, sem se deixar fotografar. "Milhões de mulheres anônimas, domésticas, escravas e faveladas contribuíram para construir o Brasil. Sou de uma geração em que as mulheres trabalhavam silenciosamente, mais recolhidas."
Aos 65 anos, Chico Buarque é o quarto filho da família. "Minha mãe sempre foi preocupada com o lado prático da casa, a disciplina, a educação dos filhos e netos; pelo meu pai, relaxadão, não rolava nada." O maior compositor do Brasil garantia que, por Maria Amélia, poderia abandonar a música popular para ser arquiteto imediatamente. "Minha mãe nunca gostou dessa história de palco, de artista.", contou. "Apesar de adorar música e shows como os de Milton Nascimento e Ney Matogrosso, ela queria outra vida para a gente", contou, à época (2002), a filha caçula e também cantora Christina, hoje com 59 anos, salva certa vez por Maria Amélia de ser esmagada por Vinícius de Moraes, que, mais pra lá do que pra cá, quase sentou sobre o bebê no sofá da casa do Pacaembu. A lenda se encarregou de divulgar Chico como o protagonista da história.
Chico Buarque abandonou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP no terceiro ano, em 1965. "Mamãe foi à faculdade trancar a matrícula e está com a chave até hoje", brincava. Naquele ano, Chico lançaria o compacto de estreia, com Pedro Pedreiro e Sonho de Carnaval, primeira canção do compositor inscrita em um festival, o da TV Excelsior, defendida e depois gravada por Geraldo Vandré. "Minha mãe pensa que, a qualquer momento, posso voltar para a Arquitetura e, às vezes, imagina que eu seja arquiteto. Quando visita meu apartamento, no Leblon, pergunta se o projeto é meu e eu digo que sim", divertia-se. "Com certeza, exigiria que me tornasse um Niemeyer ou um Frank Ghery, nada menos."
Crédito da imagem: Blog passavantecr.blogspot.com
Em meados da década de 90, o casarão dos Buarques de Hollanda, atrás do estádio do Pacaembu - endereço de efervescência cultural do Brasil, de 1956 a 1982 - foi posto à venda pelo valor de US$ 400 mil. Fernando Moraes, secretário de cultura no governo Quércia (1987-1990), tentara transformar a casa em centro cultural, o que não aconteceu. A família vendeu a biblioteca de Sérgio (cerca de 10 mil livros) para a Unicamp. Os documentos do historiador foram doados para a Universidade de Campinas. "Gostaríamos que a casa virasse um centro dirigido a professores e alunos de História do Brasil", sugeria Chico. "Seria muito mais interessante manter ali uma instituição cultural." O compositor temia "a demolição da casa para se construir no lugar um consultório ou coisa do gênero." Antes de se tornar presidente da República, Luiz Ignácio Lula da Silva, amigo de Maria Amélia e de Sérgio Buarque, nos garantiu que conversaria com a então prefeita Marta Suplicy a respeito. "Quantos Sérgios Buarques surgiram neste século?", perguntava Lula.
O casarão da Rua Buri, onde o cineasta e acadêmico Nélson Pereira dos Santos reuniu toda a família para filmar Raízes do Brasil, em 6 de abril de 2002, foi tombado, sobrevive com as mesmas características, mas é alvo de uma disputa judicial, que começou quando Emérita Aparecida, ex-babá dos filhos de Sérgio Buarque de Hollanda Filho, o Sergito, alegou que tinha direitos e não deixaria a casa. A prefeitura de São Paulo desapropriou o casarão e, no começo de 2007, depositou R$ 470 mil em juízo, em nome da família Buarque de Hollanda, que jamais deixou de pagar IPTU. Na época da decisão de adquirir o terreno, a prefeita ainda era Marta Suplicy e o secretário de Cultura, Marco Aurélio Garcia, atual assessor da Presidência da República para assuntos internacionais. A ideia é construir ali a Discoteca Sérgio Buarque de Hollanda e para lá transferir o acervo da Discoteca Pública Oneyda Alvarenga, idealizada pelo escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945).
O Partido dos Trabalhadores é a paixão política de Maria Amélia. Quando vem ao Rio, o presidente Lula arruma um intervalo na agenda para visitar a velha amiga no Edifício Alcazar, embora Ana de Hollanda garanta que isso só ocorreu duas vezes em 27 anos de amizade. Sérgio Buarque de Hollanda assinou a ficha número 2 do PT em 1980. A número 1 é do crítico de arte pernambucano Mário Pedrosa (1900-1981). "Minha mãe sempre acompanhou o velho, mas não é muito entusiasmada com o PT do Rio", dizia Chico Buarque. "Meu marido atendeu a um convite do Mário Pedrosa e foi ao Colégio Sion para fundar o PT", lembra Maria Amélia. Para eleições proporcionais, sempre votou em amigos como Chico Alencar ou Elomar Coelho. Quando o partido do coração fazia algo que não concordava, como, por exemplo, rejeitar a candidatura de Vladimir Palmeira, ela votava em Leonel Brizola. Quando a esquerda não tem chances, nem sai de casa em dia de eleição.
Maria Amélia foi a primeira pessoa a contribuir com a campanha presidencial de Lula em 1989, com um cheque da pensão de viúva a que tem direito. Quem nos contou a história, em 2002, foi o próprio Lula. Ele disse que, no aniversário de 90 anos de Maria Amélia, tentou, com o escritor Frei Betto e o crítico literário Antônio Candido, fazer-lhe uma surpresa. Ela preferiu jantar com os filhos no Jardim Botânico, no Rio. "Um metalúrgico de São Bernardo filiar-se ao PT é quase obrigação, mas uma pessoa como dona Maria Amélia só faz isso por solidariedade.", dizia Lula. O ex-petista Chico Alencar, de 60 anos, amigo de Maria Amélia e atualmente deputado federal pelo PSOL, testemunha tamanha boa vontade. "Memélia, ativíssima, comparecia à sala alugada pelo PT no Rio para conversar com eleitores e envelopar cartas."
No próximo capítulo: o começo do namoro de Maria Amélia com Sérgio Buarque de Hollanda, no carnaval de 1934, ao som de Noel Rosa e Braguinha, e os depoimentos da primogênita Miúcha e de amigos, como Dorival Caymmi e Paulo Vanzollini.
Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).
Vídeo em que Maria Amélia Buarque de Hollanda fala ao cineasta Nélson Pereira dos Santos de "Raízes do Brasil" e da atuação dela como datilógrafa dos originais de um dos maiores clássicos da sociologia no País.
Aguarde o segundo capítulo a seguir!
Obs.: Texto originalmente publicado no dia 13/09/2009 no blog PassavanteCR, reproduzido no Box Digital de Humanidades como homenagem à Maria Amélia Buarque de Hollanda, a matriarca da família Buarque de Hollanda, que nasceu no dia 25 de janeiro.
*Cláudio Renato Passavante é repórter, editor e produtor (15. prêmios de Jornalismo, dois Esso), produz e edita o programa de Miriam Leitão, na GloboNews há 12 anos Trabalha na Rede Globo desde 2002.
Gostou do texto? Então não deixe de clicar no coração aqui embaixo e de compartilhar. E deixe seu comentário ou dúvida!
Comentários