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Foto do escritorLuciene Carris

Reflexões fluídas sobre o 08 de março: as mulheres e a escrita

Atualizado: 9 de mar. de 2023

Rio de Janeiro, 08 de março de 2023.

Luciene Carris*



Eventualmente, em razão da minha pesquisa sobre as origens da família Carris (Carrii, assim que se escreve) na Itália, sou sondada por pessoas próximas sobre a metodologia por mim empregada para localizar documentos como certidões de nascimento, casamento, óbitos, atestados de trabalhos etc., sobre algum de seus antepassados. Alguns me procuram por interesse para requisitar a tal da cidadania italiana ou portuguesa, outros, - confesso ao leitor que aparecem em menor grau -, geralmente, possuem alguma curiosidade real/sentimental sobre a sua família ou sobre algum acontecimento inusitado relacionado deste antepassado à história de algum bairro do Rio de Janeiro.



Crédito da imagem: Wix.


Por vezes, este antepassado poderia ter sido um médico ou engenheiro renomado ou até aquela primeira família que se estabeleceu numa determinada pracinha no Jardim Botânico, e que criou um primeiro negócio local ou até mesmo foi um artista conhecido. Há também a procura por informações sobre indivíduos comuns, antigos trabalhadores de fábricas, por exemplo. A verdade é que pesquisar sobre a história de famílias me fascina, assim como investigar biografias, narrativas de vida e genealogias. Mas, uma outra coisa que chama bastante atenção é o fato da maioria dos personagens procurados serem do sexo masculino. Não se trata de uma conclusão, os dados são limitados para uma generalização, mas me inspira algumas reflexões.


Sem dúvida, a recuperação da trajetória pessoal de um indivíduo comum demonstra como a nossa história não se estrutura, apenas, por grandes personagens, e revela a riqueza das relações sociais. Por muito tempo, a história valorizou a narrativa de grandes feitos ou de grandes personagens. É bem verdade que, este tipo de narrativa foi considerado sem muita importância, devido aos obstáculos metodológicos e de recursos ou, até mesmo, pelo preconceito envolvido, o que tornava tal registro inacessível. Mas, recentemente isto tem mudado. Assim, inúmeros trabalhos e pesquisas têm sido correntemente publicados, trazendo contribuições originais. Segundo o historiador italiano Giovanni Levi, “(...) no curso da vida de cada um, de uma maneira cíclica, nascem problemas, incertezas, escolhas, uma política da vida cotidiana que tem seu centro na utilização estratégica das regras sociais” (LEVI Apud REVEL, 1998, p. 22). Desse modo, a cultura popular e a atuação dos indivíduos são temáticas que possibilitam uma investigação da dimensão sociocultural. As culturas populares, os costumes e as tradições de trabalhadores e de pessoas comuns estruturam identidades e consciências sociais.



Crédito da imagem: Jornal da USP.


De uma maneira geral, podemos incluir os personagens que foram, ao longo do tempo, excluídos da história, tomando aqui como ponto de partida o estudo seminal da historiadora francesa Michelle Perrot, professora emérita da Universidade Paris VII. Segundo Michelle Perrot, a história “por muito tempo, esqueceu as ‘mulheres’, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, do inenarrável, elas tivessem fora do tempo, ou ao mesmo tempo fora do acontecimento” (PERROT, 2005, p. 09). Contudo, como ela apontou, “as mulheres não estão sozinhas neste silêncio profundo. Ele envolve o continente perdido das vidas tragadas pelo esquecimento em que se aniquila a massa da humanidade” (PERROT, 2005, p. 11).


Então, recentemente, uma moça me procurou, e tão logo me confidenciou uma curiosa descoberta, era descendente de uma certa poetisa da Bélle Époque, e ao que tudo indica, constatou um certo apagamento sobre a sua memória em seu núcleo familiar. Por esta razão, ela gostaria de conhecer mais sobre a sua história e a sua importância para a literatura, e quem sabe escrever um livro, pois possuía fotografias e outros documentos em seu arquivo familiar. E, assim, me observei numa cruzada pessoal com intuito de compreender uma conjuntura bem complexa, uma dinâmica entre o que poderia ter sido permitido ou não em outra época, a natureza da ambiguidade entre o público e o privado. Como se sabe, as fontes são documentos fundamentais ao ofício de qualquer historiador/historiadora, sejam documentos escritos, imagéticos, depoimentos orais, etc., mas e os silenciamentos? Isto me leva refletir sobre o “não dito”, a uma “memória subterrânea”, aquilo que é “indizível”, a um “controle da memória”, e, consequentemente, das lembranças, aliás, como bem apontou Michel Pollak “um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação” (POLLAK, 1989, p.11).


Retomando as reflexões de Michelle Perrot sobre “as mulheres públicas ou os silêncios da história”, a historiadora aponta o silêncio, o pudor, a negligência e a autodesvalorização até das mulheres sobre os seus diários íntimos e correspondências, assim como revelou as “destruições maciças foram provocadas por herdeiros indiferentes por muito tempo” sobre o legado de seus antepassados femininos (PERROT, 2005, p. 11). Sem dúvida, podemos associar tais atitudes aos costumes então vigentes, pois os meios de expressão das mulheres como o gesto, a fala e a escrita foram tolhidos durante séculos, bem como o que hoje compreendemos como o simples direito de ir e vir, de caminharmos sozinhas pelas ruas das cidades, nos era impedido, era mesmo malvisto. Pois, o lugar da mulher não era o espaço público, mas o privado, da casa, do lar.


Não é demais destacar que a educação feminina foi considerada um capricho, algo desnecessário, e, porventura, a "causa" para muitos dramas familiares. Além disso, por um dado momento, quando lhes foi permitida, a educação das meninas e moças se restringia no máximo ao saber da matemática das quatro operações essenciais, bem como aos cuidados com a casa e com os filhos, assim, como, a leitura feminina foi considerada ligada à ociosidade ou à perniciosidade. O destino das mulheres era o casamento, elas eram educadas para se tornarem donas de casa, mães e esposas dedicadas aos seus maridos.


E, assim, a escrita feminina foi alvo de restrições, pois não poderia ferir o código moral da sociedade patriarcal, limitou-se a uma escrita que lhes era apropriada voltada para receitas e outros registros domésticos. Segundo Michelle Perrot (2005, p. 13):


O uso [da escrita], essencial, repousa sobre o seu grau de alfabetização e o tipo de escrita que lhes é concedido. Inicialmente isoladas na escrita privada e familiar, autorizadas a formas específicas de escrita pública (educação, caridade, cozinha, etiqueta...), elas se apropriaram progressivamente de todos os campos da comunicação e da criação: poesia, romance sobretudo, história às vezes, ciência e filosofia mais dificilmente. Debates e combates balizam estas travessias de uma fronteira que tende a se reconstituir, mudando de lugar.



Capa do livro O momento literário de João do Rio.



Em 1908, o conhecido cronista da cidade, João do Rio, apelido usual de Paulo Barreto, publicou uma enquete entre os literatos sobre a contribuição ou não do jornalismo para a literatura, a obra recebeu o título de O momento literário, e contou com a participação de 40 escritores. De fato, observa-se nesta seleta lista a presença de uma única mulher, que coincidentemente era casada com outro entrevistado. Tratava-se do casal Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e de Filinto de Almeida (1857-1945), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Para muitos estudiosos, o livro revela o ambiente intelectual brasileiro, bem como a mentalidade então reinante na primeira década do século XX, e sem dúvida vale a pena a sua leitura.



Crédito da imagem: Templo Cultural Delfos.


O capítulo recebeu o título de “Um lar de artistas”. Além de transcrever partes das entrevistas concedidas, João do Rio nos apresenta de maneira peculiar a casa do casal em Santa Teresa, e, descreve a cidade vista dali do morro como um “perpétuo cenário de apoteose”. Porém, nos chama a atenção a fala da sua entrevistada, que se destacou pela escrita de obras infantis, bem como contista, romancista, cronista e dramaturga, legou uma obra feminina bem extensa, assim como apoiou a causa abolicionista, o divórcio e a educação das mulheres, o que demonstrava possuir um pensamento e atitude na vanguarda para a sua época.

Júlia Lopes de Almeida revelou ao João do Rio o medo de que seu pai soubesse do seu interesse pela escrita, e guardava para si os seus versos ainda bem jovem. Até que sua irmã, Adelina Lopes Vieira, lhe pregou uma peça, e entregou para o pai seus versos. Aliás, Adelina se envolveria com Júlia, posteriormente, na escrita da obra Contos Infantis (1886). Para a sua surpresa, o seu pai, foi um dos seus incentivadores iniciais. Assim, tão logo, começou a escrever para o periódico A Gazeta de Campinas, e a partir daí, seguiu uma trajetória singular na literatura e no jornalismo, pois era o “ganha pão” de muitos escritores.



Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas... (RIO, 1908, p. 06).



Como as escritoras eram discriminadas, a escrita era considerada algo pecaminoso para as mulheres “honradas”, então, temia um castigo real pelo seu “grande crime”. Em outra passagem, não menos interessante, revelou a sua relação com a produção de suas obras. Naquela altura, já havia interrompido o trabalho nos jornais, passou a realizar o trabalho da escrita “aos poucos, de vagar, com o tempo”, e confessou que “há uma certa hora do dia em que as coisas ficam mais tranquilas. É a essa hora que escrevo depois do almoço”, porém “não há meio de esquecer a casa”, pois “quem, entretanto cuidaria dos filhos, dos arranjos da casa?”. Apesar da surpresa de uma fala considerada antiquada para uma autora considerada tão vanguardista, observamos que “é difícil que não se procure nessas palavras a estratégia que percebemos em sua ficção, embora não se possa ignorar que a escritora nunca rompeu com a situação de mãe e esposa” (MENDONÇA, 2003, p. 289). Acrescento ainda que, Júlia pode ter escolhido "renunciar" à árdua tarefa da escrita, apesar de pertencer a uma família remediada, possuía o privilégio de contar com uma certa assistência em seu lar.


O caminho ainda é longo, é uma realidade a dupla jornada de muitas mulheres, que trabalham fora e em casa. Se tivemos avanços, sem dúvida, tivemos inúmeros. Houve um aumento das mulheres com ensino superior, contudo, ainda há uma barreira em relação às profissões escolhidas, em especial na área de exatas. Apesar disso, as mulheres se mantêm, - tradicionalmente -, como a maioria nas áreas ligadas a cuidados e educação. Mesmo assim, chegamos a uma triste constatação, dois terços dos analfabetos em todo mundo são mulheres. Infelizmente, a violência contra a mulher permanece assombrosa, os dados continuam alarmantes. Vale a pena ainda ressaltar que o acesso à educação não implica em igualdade de oportunidades de trabalho, raro ainda são os cargos de liderança até em universidades como reitoras, sem ignorar a igualdade salarial sempre recuperada em tantos noticiários.


Concluo o texto desejando um Feliz Dia Internacional das Mulheres, uma data que traz muitas reflexões.



Referências:

CARDOSO, Luciene P. Carris. Histórias do Jardim Botânico: um recanto proletário na zona sul carioca. RJ: Telha, 2021.

MENDONÇA, Cátia Toledo. Júlia Lopes de Almeida: a busca da liberação feminina pela palavra. Revista Letras, UFPR, Curitiba, n. 60, p. 275-296, jul./dez. 2003.

PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

_______. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989.

REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

RIO, João do. O momento literário, 1908. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/1977 Acesso em: 06 mar. 2023.



*Luciene Carris é historiadora (UERJ).




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