Luciene Carris*
Rio de Janeiro, 01 de março de 2022.
No último dia 24 de fevereiro de 2022, celebrou-se os 90 anos da conquista do voto feminino no Brasil. Mas é bom pontuar que foi um processo que contou com a participação decisiva de muitas mulheres, muitas delas até eclipsadas da história, e de algumas figuras masculinas. Além disso, é bom recordar o que significou o decreto n. 21.076 editado durante o governo provisório de Getúlio Vargas (1930-1934), que instituiu o Código Eleitoral e a Justiça Eleitoral.
Careta, 12/11/1932, ed. 1273.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Atualmente, se discute a importância da cidadania e da democracia no sistema de poder dos países do mundo ocidental, até se populariza tais conceitos sem maiores reflexões. Problematiza-se que os cidadãos ou cidadãs pedem ou possuem muitos direitos, mas têm poucos deveres ou não os cumprem. Questiona-se ou menospreza-se até a importância dos direitos humanos e a sua longa história.
Em 1793, Marie Gouze, conhecida como Olímpia de Gouges, foi guilhotinada em Paris. Impulsionada pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão divulgada em agosto de 1789, a reconhecida escritora de romances e de peças teatrais representadas na Comédie-Française, publicou, em 1791, a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã. O documento reproduzia alguns dos dispositivos do documento de 1789, mas introduzia no primeiro artigo do seu texto uma inovação: “a mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos”.
Com efeito, o peso da tradição prevaleceu para os membros da Assembleia Constituinte, que assinalaram que a cidadania permaneceria como um privilégio do gênero masculino, ignorando a extensão dos direitos para as mulheres na Carta Constitucional. Com a radicalização do processo revolucionário, sem o direito assegurado de defesa, a ousada humanista Olímpia, que defendia o fim da escravidão e o divórcio, teve a vida abreviada.
Naquele mesmo período da agitação da França revolucionária, circulou pelos salões de Paris a escritora inglesa Mary Wollstonecraft, mãe de Mary Sheley, a célebre autora de Frankenstein. Em 1792, publicou a obra A reinvidicação dos direitos da mulher (1792). O livro era uma resposta direta ao livro Émile ou da educação (1762) do filósofo Jean-Jacques Rousseau, cuja obra reconhecida já era bem difundida. Para o pensador da Suíça, as mulheres deveriam ter uma instrução superficial, restrita à uma educação moral devido à sua limitação intelectual, o que no entendimento de Mary se tratava do resultado de práticas culturais e sociais impostas às meninas e mulheres.
Além de Olímpia de Gouges e de Mary Wollstonecraft, outras mulheres versaram sobre a educação e a emancipação feminina. No Rio Grande do Norte, Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, publicou, aos 22 anos de idade, a obra Direitos das mulheres e injustiça dos homens em 1832. Até a publicação da pesquisa de Maria Lúcia Pallares-Burke, em 1996, o livro de Nísia foi considerado como uma tradução livre de Mary Wollstonecraft. Fato repetido na historiografia, que contribuiu para divulgar o pensamento da escritora inglesa no Brasil. Apesar da controvérsia, o texto é importante em diversos aspectos.
Para autora, o mito da superioridade masculina originou a submissão feminina. Submissas, analfabetas e anônimas, a grande maioria das mulheres vivia “enclausurada nos preconceitos” e na ignorância. Ao longo do texto, Nísia questionou o porquê da inexistência de mulheres em lugares de poder, uma vez que “todas as indagações da anatomia não têm ainda podido descobrir a menor diferença nesta parte entre os homens e as mulheres: nosso cérebro é perfeitamente semelhante ao deles” (p. 91). A sua crítica não se restringiu à publicação de obras, dedicou-se ao magistério também.
Na rua Direita, atual Primeiro de Março, no Rio de Janeiro, Nísia Floresta dirigiu uma escola para meninas, que não se restringia ao ensino de tarefas consideradas femininas como prendas domésticas e noções rudimentares de matemática, em especial, das quatro operações (somar, dividir, diminuir e multiplicar). Causou espanto geral para a sociedade bem como alimentou muitos desafetos, o ensino para as meninas de “gramática da língua nacional por um método fácil, o francês, o italiano, e os princípios mais gerais da geografia”.
Aliás, a Constituição Federal de 1824, inspirada no modelo da carta magna francesa, delimitou que as mulheres permaneciam sem direitos políticos, portanto, sem direito ao voto, como cidadãos de segunda classe. Em 1831, um projeto de lei de José Bonifácio e Alves Branco propunha que mulheres viúvas ou separadas pudessem votar. Consideradas “chefes de família”, elas poderiam manifestar suas vontades políticas. Outra figura digna de nota é o escritor e político José de Alencar, que apoiou a ampliação do sufrágio para as mulheres, na obra O sistema representativo (1868), desde que como eleitoras, elas soubessem ler e escrever.
Aproveitando de uma brecha da reforma eleitoral de 1881, a Lei Saraiva, que admitia a titulação acadêmica como qualificação para admissão eleitoral, a dentista Isabel de Souza Mattos, do Rio Grande do Norte, em 1890, foi impedida de votar. A queda da monarquia e a instauração do regime republicano não alterou a situação política das mulheres, apesar de calorosos debates.
Mas isto não impediu a atuação de uma imprensa feminina e de sufragistas como Josefina Álvares de Azevedo, Júlia Lopes de Almeida e Inês Sabino, que militaram através do periódico A família, entre 1888 e 1897, em prol da conscientização política das mulheres. Algumas décadas depois, inspirada nas sufragistas inglesas, um grupo de 27 mulheres, entre elas professoras, donas de casa e escritoras, lideradas pela professora Leolinda de Figueiredo Daltro, em 1910, criou o Partido Republicano Feminino.
Uma das integrantes do partido foi a poetisa libertária Gilka Machado, reconhecida pela sua poesia erótica. Durante o carnaval de 1917, Leolinda Daltro organizou o carro alegórico “O voto feminino”, que desfilou nas ruas do Centro e atraiu a atenção da imprensa. Alguns meses depois, o deputado Maurício de Lacerda, próximo de Leolinda, conhecido defensor do movimento operário, levou à Câmara um projeto de lei eleitoral, que não teve sucesso imediato.
O Malho, 1917, ed. 771.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Muitos debates se sucederam naquele ano, que ficou marcado pelo contexto da Primeira Guerra e da Revolução Russa. A imprensa ilustrada representou bem o pensamento da sociedade da época, pois as ilustrações ironizavam que o voto feminino poderia causar a extinção da família brasileira e a inversão dos papéis sociais considerados sagrados, um debate que se estendeu para o âmbito dos movimentos ligados à Igreja Católica. Outros consideravam que as mulheres não sabiam votar e que reproduziriam os votos dos seus maridos ou pais.
Em 1922, surgia a Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino, além do voto feminino, preconizava a instrução da mulher, a proteção às mães e à infância, bem como uma legislação para o trabalho feminino. Contou com a participação da bióloga Bertha Lutz, filha do cientista Adolpho Lutz, Jerônima Mesquita (cujo pai fora barão), de Maria Eugênia Celso (cujo avô fora conde), da advogada Mirtes Campos, da professora e escritora Maria Lacerda de Moura, da engenheira Carmen Portinho e da escritora Stella Duval (MARQUES, 2019). Uma das conquistas da Federação foi a vitória de Alzira Soriano (cuja família era ligada ao coronelismo local), como prefeita de Lages, no Rio Grande do Norte em 1928.
Dez anos depois, em 1932, após uma ampla discussão e da atuação das sufragistas da Federação Feminina e de outros grupos, as mulheres conquistaram o direito de participar das eleições. Contudo, há de destacar que a participação feminina não era obrigatória, mas facultativa. Não eram obrigadas a votar as donas de casa e as filhas que não tinham um trabalho remunerado, o que de fato mantinha a supremacia patriarcal. Se lembrarmos que no Código Civil vigente da época, a autoridade da sociedade familiar era masculina, portanto, as mulheres continuaram discriminadas. Assim, o alistamento feminino permaneceu baixo, além disso o sufrágio feminino não gerou igualdade política, as mulheres continuaram (e continuam) sub-representadas. Sem dúvida, a data de 1932 é um passo importante nesse longo processo de luta das mulheres pela igualdade, por representatividade, por direitos civis e políticos, pelo direito básico de circular no espaço público, enfim, de participar do destino do país. A francesa Olímpia de Couges morreu em 1792, apenas em 1945 as francesas puderam de fato votar pela primeira vez em seu país.
Um breve olhar sobre a composição socioeconômica da Federação, demonstra que em sua maioria, o grupo era de mulheres letradas e de classe média, não refletindo a realidade brasileira. Destaco ainda a figura da datilógrafa e líder sindical alagoana Almerinda Farias Gama, integrante da Federação, e uma das pioneiras da participação das mulheres negras na política, que teve uma atuação interessante na Assembleia Constituinte de 1934 como candidata.
Almerinda Farias Gama depositando seu voto na urna.
Acervo CPDOC.
O certo é que depois de 90 anos, a participação feminina na política ainda é reduzida, alvo de controvérsia e de preconceitos. De acordo com a matéria publicada pela Agência Câmara em 2021, “’o Brasil, a Câmara dos Deputados possui apenas 15% de mulheres; e o Senado Federal,12%. Em âmbito municipal, 900 municípios não tiveram sequer uma vereadora eleita nas eleições de 2020”. De todo modo, as efemérides são um bom termômetro para refletir a história de um país, mas ainda falta muito para se comemorar sobre essa data. A Constituiução Federal garante que o voto é um direito de todos, idenpendente da classe, renda, crença, sexo ou religião. Um olhar interseccional sobre gênero, raça e classe é o ponto nevrálgico a se considerar para uma maior representatividade nas próximas eleições, objetivando uma sociedade brasileira menos desigual.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Referências:
Câmara dos Deputados, Especialistas lamentam baixa representatividade feminina na política, Agência Câmara de Notícias, 27/08/2021. Disponível em: https://bityli.com/BnciS Acesso em: 28 de fev. 2022.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Os direitos da mulher e da cidadã por Olímpia de Gouges. São Paulo: Saraiva, 2016.
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
KARAWEJCZYK, Mônica. As filhas de Eva querem votar: dos primórdios da questão à cidadania do sufrágio feminino no Brasil (1850-1932). Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em História, UFGRS, 2013.
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. O voto feminino no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019.
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