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Reflexões sobre o Nosso Sagrado: intolerância religiosa ontem e hoje.

Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2021.

Deise Guilhermina da Conceição*

Silene Orlando Ribeiro**



No dia 30 de setembro de 2021, quinta-feira, cruzamos o pátio do Museu da República com o coração na boca. Fomos convidadas para integrar o segundo grupo de pesquisadores e pesquisadoras que participaram da visita técnica ao acervo Nosso Sagrado, coleção do Museu da Polícia do Rio de Janeiro, formada a partir dos objetos religiosos apreendidos entre 1890 e 1941, que passou para a guarda compartilhada do Museu da República e das lideranças religiosas que foram alvo das incursões repressivas em um passado recente. O itinerário da coleção, sua nomenclatura anterior “Magia Negra” e sua ressignificação sob o nome “Nosso Sagrado” estão ligados às lutas por liberdade religiosa no tempo presente. Novos e antigos fantasmas rondam a fé e o sagrado afro-indígena brasileiro.



Crédito: Wix.


Em 2020, foram registrados no Estado do Rio de Janeiro, 1355 crimes que podem estar associados ao racismo religioso. Estes dados foram apurados pelo Instituto de Segurança Pública (SP). Fenômenos sociológicos que vêm ganhando relevo nos últimos anos, o racismo religioso e a intolerância religiosa exigem da sociedade reflexão. O crescimento desses crimes em pleno século XXI desperta nos estudiosos um misto de curiosidade e receio. Alguns questionamentos são necessários: Quais são os rumos da democracia brasileira? Como o Estado vem garantindo políticas públicas para a liberdade religiosa e para o exercício da cidadania? Como a sociedade brasileira vem lidando com essas questões em seu passado recente?


É importante salientar que a liberdade religiosa é algo recente no Brasil e remonta, em tese, à Primeira República. Se realizarmos um mapeamento da legislação que regulava os cultos religiosos no Brasil desde o século XIX, nos depararemos com um cenário marcado pela hegemonia católica e a criminalização dos demais sistemas religiosos. De acordo com a Lei de 16 de dezembro de 1830, o Código Criminal do Império do Brazil, constituía delito, expresso no Artigo 276, o exercício de qualquer outra prática litúrgica fora do catolicismo, a “ Religião de Estado “. O início da Primeira República trouxe novas abordagens a respeito da temática religiosa. O próprio processo de separação entre a Igreja e o Estado suscitou um outro suporte legislativo. É neste contexto que o Decreto n º 119-A de 07 de janeiro de 1890 foi promulgado e “garantiu a plena liberdade de cultos”[1].


No entanto, as mudanças efetuadas no Código Penal através da promulgação do Decreto N º 847 de 11 de outubro de 1890[2]. mostram as contradições da liberdade religiosa instituída na República Velha. As novas relações do poder republicano com os corpos, as crenças, os saberes tradicionais e a ascensão dos modelos científicos ocidentais e do discurso médico consubstanciados na lei deram início a um longo e violento processo de perseguição religiosa no Rio de Janeiro. As práticas religiosas e de cura afro-indígenas, as artes de prever o futuro, os encantamentos e magias, típicos de uma sociedade permeada por mestiçagens são fortemente combatidas através do Artigo 157[3]:


“ Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica:

Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.

§ 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas:

Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000.

§ 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. “


O governo de Getúlio Dorneles Vargas (1930-1945) também foi marcado pelo recrudescimento das perseguições religiosas em todo país. Os praticantes das religiões de matriz afro-indígena, homens e mulheres das classes populares, são os principais alvos das investidas das ações policiais. As tensões e as resistências populares também emergiram nestas querelas entre o Estado e os fiéis, sobre a questão da fé e da liberdade religiosa.


Os estudos pioneiros de MAGGIE (1992) e as pesquisas desenvolvidas por Velasco (2019) e por Oliveira (2015) trouxeram à tona importantes aspectos do processo de perseguição e criminalização das manifestações religiosas de matriz afro-indígena e do espiritismo no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Os processos de invasão dos templos religiosos de umbanda, candomblé e de residências pela polícia, geraram apreensões de objetos sagrados e a prisão de sacerdotes, sacerdotisas, oraculistas e a formação de um acervo de peças sagradas reunido pela polícia do Rio de Janeiro, na Coleção Museu de Magia Negra do Rio de Janeiro, e ratificaram o racismo e a discriminação racial para com a cultura de matriz africana, naturalizando uma percepção pejorativa de seus ritos, conhecimentos, ethos e cosmogonia.


Neste texto, retomar o processo de perseguição religiosa e de criminalização do sagrado afro-indígena brasileiro durante a Primeira República e a Era Vargas, tem como objetivo trazer algumas reflexões a partir da História para o nosso tempo, além de entender as estratégias utilizadas pelo racismo para se perpetuar, ao longo do tempo, no imaginário da população brasileira, oprimindo e dilacerando a população negra.


Como descrevemos acima, a Primeira República marca a separação entre igreja e estado e a possibilidade de ampliação da liberdade religiosa. Paradoxalmente, a mesma República dedica-se a pensar no ideal de homem brasileiro. Movidos pelo pensamento eugenista que potencializou a entrada de imigrantes europeus no país e os movimentos higienistas, clarear a população já majoritariamente negra era o objetivo. Salientamos que o processo de branqueamento implicava também a eliminação dos ritos e costumes de matriz africanas que eram apresentados como malignos e perigosos. Dessa forma, as peças que hoje compõem a coleção Nosso Sagrado e como forma de reparação fazem parte do acervo do Museu da República no Rio de Janeiro, receberam o nome de coleção Magia Negra.


Os fatos que descrevemos nesse texto já foram narrados por muitos teóricos, ativistas, religiosos e demais interessados na questão, que comemoraram o cumprimento de uma etapa importante do processo de reparação: a transferência das peças e a guarda compartilhada entre religiosos e a equipe técnica do museu, que de forma primorosa trataram e acondicionaram os mais de 500 objetos sagrados. No último dia 30 de setembro, tivemos a oportunidade visitar as peças, ainda na reserva técnica do museu e não conseguimos esconder nossa emoção e orgulho de participar daquele momento esperado por tantos ancestrais, como citamos na introdução do texto.


Contudo, segue a luta para que possamos reparar os desdobramentos da perseguição religiosa que se iniciou na Primeira República e tomou corpo no governo Vargas, no imaginário popular e por conseguinte os desdobramentos desses processos no psiquismo de todos aqueles que cotidianamente assistem a perseguição a sua fé e à memória de seus ancestrais. A mesma República que propôs a separação entre igreja e estado, combateu os corpos pretos, sua cultura e sua fé, apresentando-os como desajustados frente a um padrão hegemonicamente branco.


Processo que se recrudesce quando a perseguição recebe o respaldo da lei e os religiosos são enquadrados enquanto criminosos praticantes de delitos, inclusive cabíveis em um artigo específico, como foi mencionado anteriormente. Embora o citado artigo não vigore de forma legal, ele persiste no imaginário de muitos e legitima a perseguição e invasão de templos religiosos ainda nos dias de hoje.


Desde a década de 1970, as lideranças religiosas lutam pela recuperação dos objetos sagrados apreendidos de seus terreiros, barracões e demonizados pelas ações policiais. Os anciãos e as anciãs narram memórias antigas do Povo de Santo sobre a dor de ter o seu sagrado vilipendiado e classificado de forma pejorativa pelo Estado e por outros membros da sociedade. Em 20 de setembro de 2020, começou uma nova trajetória para as 532 peças sagradas. Foram recebidas no Museu da República, após uma longa diáspora de mais de cem anos. Quantas memórias, histórias e narrativas compõem esta trajetória? Inúmeras. Que os pesquisadores e pesquisadoras as investiguem.


Como nos propõe Munanga (2005), vivemos em uma sociedade, onde todos, pretos e brancos tiveram suas estruturas psíquicas afetadas e necessitam desconstruir um imaginário forjado por uma trajetória histórica extremamente racista. Nesse processo, ciências humanas como a sociologia, psicologia, antropologia e como destacamos neste ensaio, a história, são fundamentais no processo de revermos nossas ideias, conceitos e verdades, para que possamos construir um mundo onde a diversidade, característica tão cara a humanidade, seja motivo de orgulho e diálogo.


Notas:

[1] BRASIL .LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm.Acesso em 14 out. 2021.
[2]BRASIL. DECRETO LEI Nº 119-A DE 07 DE JANEIRO DE 1890 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm. Acesso em: 14 out. 2021.
[3] BRASIL. DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm. Acesso em: 14 out. 2021.


Referências:

BRASIL . LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm.Acesso em 14 out. 2021.

BRASIL. DECRETO LEI Nº 119-A DE 07 DE JANEIRO DE 1890. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm. Acesso em: 14 out. 2021.

BRASIL. DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm. Acesso em: 14 out. 2021.

CORRÊA, Alexandre Fernandes. A COLEÇÃO MUSEU DE MAGIA NEGRA DO RIO DE JANEIRO: O PRIMEIRO PATRIMÔNIO ETNOGRÁFICO DO BRASIL. Mneme (Caicó. Online) , Natal, v. 7, p. 50-70, 2005.

MAGGIE, Yvonee. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional , 1992.

MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o Racismo na Escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

OLIVEIRA, Natália. Repressão policial às religiões de matriz afro-brasileira no período do Estado Novo (1937-1945). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense,2015

VELASCO, Valquiria Cristina Rodrigues, A geografia da repressão: experiências, processos e religiosidades no Rio de Janeiro (1890-1929). Dissertação (Mestrado em História Comparada) -Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, 2017.



* Deise Guilhermina da Conceição é doutora e mestre em Educação formada pela Universidade Federal Fluminense , linha de pesquisa "Negro e Educação". Formada em História e especialista em História do Brasil. Professora da Rede Municipal de Educação de Duque de Caxias e da Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira. Áreas de Interesse: Educação, História e Relações Raciais.


** Silene Orlando Ribeiro é professora da rede pública estadual do Rio de Janeiro. É historiadora com ênfase na História das Populações Indígenas e do Indigenismo no Brasil. Vem realizando pesquisas sobre as populações indígenas no Rio de Janeiro , na Baixada Fluminense e sobre o sagrado afro-indígena. Graduou-se em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ. Realizou o mestrado em História na Universidade Federal Fluminense-UFF. Obteve o título de doutora em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ com um estudo sobre o recrutamento indígena para o Arsenal da Marinha (séculos XVIII-XIX).Publicou os livros a Maçã Mordida (2012) e Índios, Guerreiros e Úteis Povoadores: um estudo sobre a Aldeia de São Pedro de Cabo Frio - Séculos XVII-XVIII (2015).


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