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Foto do escritorLuciene Carris

“Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”

Atualizado: 20 de fev. de 2023

Rio de Janeiro, 16 de fevereiro de 2023.

Luciene Carris*


Muitos estudos apontam que durante a pandemia do coronavírus houve um aumento considerável de adoção de animais de estimação. De acordo com a União Internacional Protetora dos Animais, a procura atingiu o número expressivo de 400% nos primeiros meses da pandemia. Por outro lado, o abandono ocorreu de maneira significativa. Se de um lado, o isolamento proporcionou uma nova atitude, muitas vezes influenciada por puro impulso ou pelo sentimento de solidão, por outro, o abandono e os maus tratos se mantiveram reais, mas ocorreu muito arrependimento de fato, e assim, observamos tantos animais domésticos “perdidos” (abandonados) pelas ruas do Rio de Janeiro.


Não posso deixar de mencionar que me incluo no grupo especial dos “gateiros” que adotou animais de estimação, e aqui em casa são três gatas: Juru, Lili e Pretinha, que chegaram nessa ordem há quase três anos. De todo modo, já adotamos um pequinês, já falecido infelizmente, além de outros bichos como pássaros, peixes e hamsters...


Há uma célebre frase atribuída ao escritor e diplomata Guimarães Rosa (1908-1967): “Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”. A indagação, na verdade, que dá título ao texto foi retirada da obra póstuma Ave, palavra, publicada originalmente em 1970, e é facilmente encontrada numa pesquisa pela internet. Outra frase não menos interessante do mesmo autor, encontrada na mesma obra, é “Amar é a gente querer se abraçar como um pássaro que voa”.



Um gato da Era Vitoriana fotografado por Harry Pointer, s.d.

Acesso em: 16 fev. 2023.


Ao que parece, sabiamente o escritor lidou muito bem com as palavras, indo além do que realmente significa, numa espécie de jogo de palavras, de maneira inventiva, proposital, nos legou provérbios e reflexões a partir de suas experiências ao longo de sua trajetória. Aliás, o autor da conhecida obra Grande Sertão: Veredas adorava os animais, especialmente, os gatos da raça angorá. De fato, pode parecer excêntrica a relação entre escritores e gatos, pois muitos posaram segurando os seus doces bichanos consagrando uma relação de afeto.




Guimarães Rosa e os animais, Instituto de Estudos Avançados da USP.

Acesso em: 16 fev. 2023.



É bem verdade que a relação entre os humanos e outros animais não é recente, aliás, remete a um conjunto de construções históricas, culturais e materiais complexas. Muitos estudos apontam que a domesticação de cães remonta ao período paleolítico, quando os homens deixaram de ser coletores e caçadores há 30 mil anos, contudo, ao que aparece há uma controvérsia quanto a data exata, o que não impede o nosso entendimento de quanto antiga é essa relação. Mas os gatos convivem com os humanos desde a Antiguidade. As imagens mais conhecidas ou difundidas destes adoráveis bichanos encontramos através das esculturas e iconografias legadas do Egito Antigo. Na mitologia egípcia, a deusa Bastet, filha do deus Sol Rá, que simbolizava a fertilidade, a reprodução, a música, a dança e o amor, era representada como uma mulher com cabeça de gata ou como uma simples gata escura.


Para além do amor ou de veneração, havia ali uma relação de pragmatismo, uma vez que o animal servia para afastar os ratos das casas e dos celeiros, preservando os alimentos, aliás, muitos continuam adotando gatos com o mesmo propósito. E, assim, a adoração aos gatos levou a sua mumificação e a criação de cemitérios inteiros para tais animais, e não por acaso, muitos foram enterrados junto aos corpos dos seus donos. Além da civilização egípcia, outros povos mantinham uma relação bem próxima com os gatos, a exemplo dos celtas (Europa Central), nórdicos (Norte da Europa) e persas (atual Irã), entre outros. Mas a sorte dos gatos se transformou, ao que tudo indica durante a Idade Média, passaram a ser associados à bruxaria, em especial os gatos de pelugem preta. Até os dias atuais, essa imagem é associada e difundida em muitos filmes e/ou seriados de Hollywood como “O mundo sombrio de Sabrina”. O bicho de estimação da protagonista, a feiticeira, foi apelidado de Salem, uma cidade dos Estados Unidos, onde muitos habitantes foram acusados de bruxaria e cruelmente assassinados no século XVII.


No século XIX, a rainha Vitória do Reino Unido (1837-1901), que reinou durante 67 anos, adotou inúmeros cães, pássaros e gatos, entre outros animais. Talvez a mais famosa seja a gata branca White Heather imortalizada deitada numa almofada. Os gatos se tornaram símbolos de status social, bem como uma representação de domínio do homem sobre a natureza com a ampla difusão de sua domesticação, sendo amplamente fotografados como um membro integrante de muitas famílias de classe alta. Além da febre pelos retratos, os gatos vitorianos se tornaram personagens de livros infantis. Coube ao ilustrador britânico Louis Wain (1860-1939) recriar um mundo onde gatos possuíam feições humanas e uma vida própria, e não por acaso, as suas ilustrações percorreram o mundo, deixando-o famoso, e a sua inusitada história, que virou um caso de psiquiatria, foi contada no filme “A vida eletrizante de Louis Wain” (2022).


Em 1846, o escritor francês Émille Gigault de La Bédolliére (1812-1883) publicou a obra A História de um gato (Histoire de la mère Michel et son chat) com ilustrações de Lorens Frolich. O pequeno livro narra a história do astuto gato vira-lata Mumu ou “Mou-mouth”, que em hebraico significa “salvo da caçarola”. Mumu que vivia nas ruas de Paris, assombrado pelos correntes maus tratos e pela fome, foi resgatado quase desvalido pela Madame de la Grenouillère, uma rica viúva, que passou a tratar o bichano com toda “pompa e circunstância”, algo que desagradou muitíssimo o seu mordomo Lustucru.


Talvez a obra mais famosa seja O gato de botas do francês Charles Perrault, originalmente publicada em 1697. Há quem se lembre das tirinhas do gato Garfield criado pelo norte-americano Jim Davis, que homenageou seu avô James Garfield Davis. Muitas qualidades dadas ao Garfield se inspiraram nas atitudes humanas como a preguiça, a ironia e a permanente fome, sem dúvida encontramos ali a manutenção de um pensamento antropomórfico. No Brasil, não podemos esquecer de mencionar a peça musical Os saltimbancos de Chico Buarque, que estreou em 1977. A história narra a aventura de quatro animais (jumento, cachorro, gata e galinha), que também se revoltam contra o tratamento dos seus donos, então, fogem e se tornam músicos, uma fábula cuja inspiração original partiu do conto dos famosos Irmãos Grimm.


Além da literatura, da pintura, da fotografia e do cinema, até historiadores da cultura dedicaram algumas páginas ao bichano. Com intuito de compreender as mentalidades da França do Antigo Regime, o historiador norte-americano Robert Darnton escreveu O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. A pesquisa partiu de um relato escrito pelo operário Nicolas Contat, em 1730, sobre um evento ocorrido. Numa certa tipografia localizada na rua Saint-Séverin, na cidade de Paris, os operários enfurecidos com o tratamento recebido pelos patrões, massacraram os gatos que ali viviam no seu ambiente de trabalho, a atitude foi percebida como uma forma de revanche contra os seus patrões. Por outro lado, Darnton apontou a naturalização das torturas e dos sacrifícios daquela sociedade, uma vez que a tortura de animais, como os gatos, podia ser observada como um episódio “divertido”, além disso, os bichanos também eram considerados objetos mágicos, pois podiam trazer “boa sorte”. Segundo Darnton:


Um certo burguês tinha vinte e cinco gatos. Mandou pintar seus retratos e os alimentava com aves assadas. Por outro lado, os aprendizes tinham que aturar uma profusão de gatos de rua, e eles também proliferavam no distrito das gráficas, infernizando a vida dos rapazes. Uivavam a noite toda, no telhado do sujo quarto de dormir dos aprendizes, impossibilitando uma noite tranquila de sono [...] eles começavam o dia num estado de exaustão, enquanto o burguês dormia até tarde (Darnton, 1986, p.103-4).


É bem verdade não podemos naturalizar a violência contra os animais, tampouco contra outros seres humanos. Aliás, o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 condena a crueldade contra os animais, assim como a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/1988), que criminalizou o ato de abusar, maltratar, ferir ou mutilar os bichanos. Contudo, há de se destacar que o primeiro estatuto jurídico legal do Direito Animal Brasileiro foi publicado em 1934 durante o governo de Getúlio Vargas. Trata-se do Decreto 26.645, conquistado através da atuação da União Protetora dos Animais (UIPA), que foi fundada em 1895 e é considerada a ONG mais antiga do país. A entidade surgiu em São Paulo, e teve como primeiro presidente o engenheiro Ignácio Wallace da Gama Cochrane, que participou de importantes obras pelo território brasileiro. A UIPA se destacou pela pressão contra as touradas que faziam enorme sucesso na Praça da República. Sem dúvida outras associações civis ou governamentais surgiram e são bem atuantes, não podemos ignorar a atuação de indivíduos solitários que militam em prol da vida e dos cuidados de tantos animais abandonados pelas ruas do nosso imenso Brasil.


Mas por que escrever, ainda que brevemente, sobre a história dos animais, em particular dos gatos? Podemos pensar em determinados aspectos da história da cultura e da história ambiental para compreender a nossa sociedade, além disso, como bem apontou a historiadora Regina Horta Duarte: “não podemos perder de vista que a história dos seres humanos é também uma história dos animais”, além disso, “uma história que não incluir os animais omite um ponto crucial da trajetória das sociedades humanas no planeta Terra”.


Mas voltar-se para os animais como estratégia para falar aos seres humanos talvez não seja algo tão delirante assim. É mais do que tempo para que os historiadores brasileiros abram seu campo de observação e escuta para os animais, e rompam de vez o injustificável silêncio que ainda predomina sobre eles (DUARTE, 2019, p. 38).



Enfim, apresento um registro das minhas gatas: Juru que realizou uma aventura de Ilha Grande ainda filhote até o Rio, Lili que nasceu de uma ninhada do Leblon e Pretinha resgatada do lixão pelo Programa Segunda Chance (ONG), uma singela homenagem a todos gateiros e aqueles que se dedicam à causa animal.





Referências:

A vida eletrizante de Louis Wain (Filme, 2022). Disponível em: https://bityli.com/9FW5z Acesso em: 12 fev. 2023.

ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula; MENDES, Thiago Brizola Paula. Decreto 24.645/1934: Breve história da “lei áurea” dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal, UFBA, Salvador, volume 15, n. 02, p.47-73, Mai-Ago 2020. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/37731/21502 Acesso em: 12 fev. 2023.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

Direito Animal. Portal Unificado da Justiça Federal da 4ª. Região. Disponível em: https://bityli.com/P2j7X Acesso em: 15 fev. 2023.

DUARTE, Regina Horta. História dos animais no Brasil: tradições culturais, historiografia e transformação. HALAC - História Ambiental, Latinoamericana y Caribeña, v. 9, n. 2, 2019. Disponível em: https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/article/view/401/355 Acesso em: 10 fev. 2023.

KEAN, Hilda. From Skinned Cats to Angels in Fur: Feline Traces and the Start of the Cat-Human Relationship in Victorian England , Cahiers victoriens et édouardiens [En ligne], 88 Automne | 2018, mis en ligne le 01 décembre 2018. Disponível em: http://journals.openedition.org/cve/3994 Acesso em: 14 fev. 2023

Harry Pointer's Brighton Cats. Disponível em http://www.photohistory-sussex.co.uk/BTNPointerCats.htm Acesso em: 16 fev. 2023.

LA BÉDOLLIÈRE, Émile de. A história de um gato. (Coleção Gatos na Literatura). Versão E-book. Disponível em: https://bityli.com/3znDE Acesso em: 16 fev. 2023.

Programa Segunda Chance (ONG). Disponível em: https://segundachancerj.com.br/quem-somos/ Acesso em: 15 fev. 2023.

União Internacional Protetora dos Animais. Disponível em: http://www.uipa.org.br/ Acesso em: 13 fev. 2023.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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