Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2023.
Carlos Eduardo Pinto de Pinto *
Qualquer carioca sabe que 20 de janeiro é feriado em sua cidade por conta do padroeiro, São Sebastião. Aliás, por ser o Rio “de janeiro”, até se poderia pensar que a data seria a de sua fundação. Esta, porém, em 01 de março, não é feriado na cidade. De todo modo, a procissão de São Sebastião e as festas dos caboclos e de Oxóssi – associados a São Sebastião pelo sincretismo na Umbanda – dizem mais sobre os primeiros tempos da cidade do que quaisquer outros eventos.
Vamos ao começo! A baía denominada como Guanabara – “seio de mar” – pelos tupinambás que habitavam a região onde seria fundada a cidade pelos portugueses em 1565, foi batizada de Rio de Janeiro por uma expedição de reconhecimento em janeiro de 1502. Acharam que avistavam um rio e o mês era janeiro: daí a confusão. Há outras versões dessa história, mas, seja qual for a explicação, o certo é que, em breve, não apenas a baía, mas toda a região passaria a ser conhecida como Rio de Janeiro.
Em princípio apresentando pouco interesse para a Coroa, essa parte do território se tornaria uma preocupação a partir de 1555, quando Nicolas de Villegagnon estabeleceu na ilha de Serigipe – hoje, ilha de Villegagnon – a França Antártica, um núcleo colonizador francês. O empreendimento se deu por meio da cooperação com os tupinambás habitantes da aldeia Karióka (SILVA, 2017), localizada aos pés do que atualmente conhecemos como Morro da Glória. Mem de Sá, governador geral do Brasil, organizou em 1560 uma expedição com portugueses, temiminós e tupiniquins – os dois últimos, inimigos históricos dos tupinambás –, para enfrentarem o empreendimento francês, sendo parcialmente bem-sucedido.
Vale frisar que a participação dos povos indígenas nessas batalhas não é mera consequência das rivalidades europeias.
Pelo contrário, são os europeus que se inserem nos conflitos locais. Ainda, a importância dos tupinambás como adversários dos portugueses não deve ser creditada apenas a sua aliança com os franceses: há indícios de que subjugar os povos autóctones era tarefa mais urgente para a Coroa do que a expulsar os franceses (ALENCAR, 2017). Ainda que não se possa determinar com precisão tal hierarquia, não há dúvidas de que os tupinambás eram mais do que coadjuvantes.
Apesar da investida portuguesa, os franceses continuaram na região, alguns plenamente integrados à aldeia Karióka. Em 1564, Estácio de Sá foi enviado por seu tio, Mem de Sá, para expulsar definitivamente os franceses e “pacificar o gentio” – ou seja, submeter os tupinambás, por meio da morte, escravização ou aldeamento. Após um tempo em São Vicente, chegou à região em 1º de março de 1565, fundando uma cidade no morro Cara de Cão, aos pés do Pão de Açúcar, onde hoje se encontra a Fortaleza São João, na Urca. Era um empreendimento estratégico para o fortalecimento da presença portuguesa.
É neste momento que o santo de nosso interesse entrou para a história da cidade: como era comum na tradição toponímica portuguesa associar um nome de devoção católica a algum elemento regional, a cidade foi nomeada “São Sebastião do Rio de Janeiro”. Tradicionalmente, se credita a devoção a Estácio de Sá, que teria trazido uma pequena imagem, feita para ser carregada nas embarcações e utilizada em ofícios nos portos, a entronizando na capela de taipa construída no Cara de Cão. Mais um elemento pode ter contado para a escolha: o rei de Portugal, então com seis anos de idade, tinha nascido no dia do santo e fora batizado em sua homenagem (KNAUSS, 2019).
Outros eventos ainda contribuíram para consolidar a devoção. O primeiro, conhecido como Batalha das Canoas, foi uma emboscada tupinambá em que os portugueses se viram envolvidos na Baía de Guanabara, em 1566. Em princípio, os indígenas tinham vantagens devido ao contingente mais numeroso, mas a vitória portuguesa foi conquistada devido a um acidente com um canhão, que espalhou uma densa fumaça, assustando os adversários. Entre os combatentes portugueses, logo surgiu o relato de que São Sebastião teria sido visto entre os barcos, os protegendo. O segundo evento também está relacionado aos conflitos entre portugueses e tupinambás: na batalha de Uruçumirim (atual Morro da Glória), crucial para a posse do território pelos portugueses, Estácio de Sá foi ferido no olho por uma flecha no dia 20 de janeiro de 1567, vindo a morrer um mês depois. O fato, que poderia ser considerado uma baixa grave do lado dos portugueses, logo foi transformado em exemplo de martírio e heroísmo.
Em ambas as batalhas, o que justificaria a relação com o santo são dois traços de sua legenda: um, pouco conhecido, é o fato de ter sido um soldado e, por isso, protetor das casernas e quartéis; outro, mais amplamente divulgado, foi sua condenação à morte por flechadas, tendo sobrevivido e continuado a pregar entre os romanos. Estácio de Sá, um guerreiro cristão morto em decorrência de uma flecha disparada por um pagão, exatamente no dia de São Sebastião, reproduzia o martírio sofrido pelo santo que venerava.
Quanto à imagem entronizada na capela do morro Cara de Cão, seria transportada em 1583 para a nova igreja no alto do morro do Castelo, para onde a cidade fora transferida em 1567. A procissão de São Sebastião – muitas vezes acompanhada de encenações na baía de Guanabara em memória da Batalha das Canoas –, se tornou um dos grandes eventos culturais da cidade. Após um período de esquecimento, a devoção foi retomada pelos capuchinhos, que assumiram o controle da igreja do Castelo. Em 1922, quando o morro e a igreja foram derrubados, os capuchinhos mantiveram a imagem e a depositaram no Santuário Basílica de São Sebastião, inaugurado em 1931 na Tijuca, mas a relíquia só é exposta no período das festividades do santo. Para lá também levaram o jazigo de Estácio de Sá e o padrão de fundação da cidade (uma pedra que demarcava a posse portuguesa).
Em 1965, durante a celebração do quarto centenário da cidade, foram construídos uma estátua de São Sebastião na Praça do Russel, aos pés do morro da Glória, e um monumento a Estácio de Sá, no aterro do Flamengo – este, com a proposta de guardar os restos mortais do fundador da cidade. Os capuchinhos, porém, se recusaram a ceder as relíquias históricas. Os dois monumentos, erigidos nas imediações do local onde se deu a fundação da urbe e cenário dos conflitos entre portugueses e tupinambás, são indícios do quanto a memória de São Sebastião continuava associada a Estácio de Sá e à conquista portuguesa. No entanto, como adiantei no início do texto, uma das ironias da história é que o santo seria sincretizado, ao longo dos séculos XIX e XX, com Oxóssi – orixá que rege as matas e a caça, simbolizado por um arco-e-flecha – e os caboclos, entidades espirituais da Umbanda, associados com os ancestrais indígenas. De modo coloquial, poderia dizer que São Sebastião passou de “flechado” a “flecheiro”, fazendo um “jogo duplo” nas batalhas que regem a fé e a imaginação histórica – ora colonizador, ora colonizado –, atualizando as tensões que marcaram a fundação da cidade.
Referências bibliográficas:
ALENCAR, Agnes. A silenciosa construção de uma guerra: uma França Antártica indígena. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. n.12, 2017, p.297-322.
KNAUSS, Paulo. Imagem de São Sebastião. In: KNAUSS, Paulo; LENZI, Isabel; MALTA, Marize (org.). História do Rio de Janeiro em 45 objetos. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.
Santuário Basília de São Sebastião. Imagem presumivelmente trazida por Estácio de Sá , Disponível em: https://igrejadoscapuchinhos.org.br/g1-mostra-restauracao-em-imagem-historica-de-sao-sebastiao / Acesso em: 19 jan. 2023.
SILVA, Rafael Freitas da. O Rio antes do Rio. Rio de Janeiro: Babilônia Cultura Editorial, 2017.
*Carlos Eduardo Pinto de Pinto é professor de História (UERJ).