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Uma historiadora em busca de um diálogo possível

Jardim Botânico, RJ, 01 de julho de 2021.

Luciene Carris*



Pensei nas inúmeras possibilidades de temas ou de assuntos para escrever no blog Box Digital de Humanidades, afinal quinzenalmente publicamos nossos ensaios e reflexões individuais, então, isso se tornou um compromisso. A verdade é que tenho me sentido pouco inventiva, mas não é por falta de assunto. A situação atual do país tem me deixado paralisada nessa dura tarefa que é a escrita, um trabalho costumaz para qualquer historiador/historiadora ou pesquisador/pesquisadora. O dia 30 de junho foi uma data simbólica para a História do Brasil, mais um dia dessa longa Comissão de Inquérito, a tal da CPI, e de um super pedido de impeachment do atual presidente deste país. Além disso, outro fato memorável ocorreu bem aqui perto de casa, um episódio questionável e indecoroso, em especial, nesse momento de pandemia do coronavírus.




Crédito da imagem: Wix


Pois bem, fui acordada com fogos às seis da manhã, uma forma pela qual os moradores da comunidade do Horto no bairro do Jardim Botânico alertaram sobre a vinda de oficiais de justiça e de forças militares, que chegaram com intuito de notificar os moradores sobre a reintegração de posse de suas casas. Cerca de 600 e poucas famílias vivem esse impasse e uma vida em suspenso, uma batalha pelo direito à sua permanência histórica na região. O certo é que o bairro passou por grandes transformações ao longo de sua história, rural, proletário até se tornar um lugar com ares aristocráticos, mas ainda se mantém uma certa ambiência de um recanto isolado no sopê da Floresta da Tijuca. Tem um passado pouco conhecido, alguns temas são relevantes em sua história e considerados, outros nem tanto. Mas qual seria a relação disso tudo?


Fiquei repensando neste dia o meu papel como historiadora. É conhecido que o historiador pesquisa em arquivos, busca registros do passado, realiza o levantamento de fontes, que podem ser documentais ou orais, mas com metodologia. Ultimamente as fontes utilizadas estão diversificadas e a digitalização de acervos têm facilitado a dura e solitária tarefa do profissional da história. Além disso, em decorrência da ampliação do ensino remonto provocado pela pandemia, observo a popularização do conhecimento através de eventos realizados nas mídias digitais através de lives e cursos, bem como o surgimento de podcasts, de canais no youtube e de blogs como este aqui. Ganha cada vez mais terreno na historiografia, a chamada “História Pública”, que bem resumidamente pode ser definida como a forma pela qual os historiadores interagem com o grande público fora das universidades, utilizando os meios tecnológicos e metodológicos disponíveis.


Constato, assim, que o campo de atuação tem se ampliado e facilitado o contato com a sociedade. Porém, isto deve ser relativizado, pois não parece ter um saldo positivo para todos. Será que alcançamos um diálogo razoável? Como bem salientou Elika Takimoto em recente livro, o diálogo é um desafio a conquistar através de uma escuta possível e o reconhecimento do outro, que possui experiências e saberes distintos já constituídos.


O que tem me chamado a atenção é o negacionismo, e por tabela o revisionismo histórico e os usos políticos do passado. Apesar da crença na popularização do conhecimento, parece que pouco avançamos. Sinto que não saímos do lugar. Embora a internet garanta a possibilidade de conhecer o mundo, países, museus e bibliotecas etc., sem sair de casa, recuperando aqui o conceito controverso de “aldeia global” do filósofo canadense Mashal McLuhan. A sensação é que realmente estamos conectados através da internet, não estamos isolados, entretanto, as redes virtuais constituem um espaço de convergência para o bem e para o mal.


Sobre o negacionismo me veio a memória aquele jovem casal conhecido que optou por não vacinar os seus filhos pequenos há alguns anos. Sobre o revisionismo, recupero aquela máxima de alguns grupos - do nosso país - de extrema-direita de que nazismo é de esquerda e de outros tantos de que o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial não existiu, se trata de uma fábula criada. Na esteira desses argumentos, atualmente se desacredita a importância da vacina. E, nesse sentido, são difundidos fake news grosseiros e superficiais contra a vacinação da população. Em pensar que tomávamos vacinas, há bem pouco tempo, sem questionar a sua origem ou a sua fabricação.


O problema é quando isso se insere como parte de uma política de estado, a tal da necropolítica tão bem analisada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Nessa lógica, decide-se quem pode viver ou não. Quando essa necropolítica se associa com a possibilidade de enriquecimento ilícito de algumas figuras políticas, sintomaticamente, o contexto se torna ainda mais cruel e imoral.



Crédito da imagem: TV Horto


Sobre os usos do passado, penso na comunidade do Horto e na sua história na região, de tempos e tempos necessita ser legitimada por conta de discursos negacionistas sobre a sua origem e a sua permanência, basicamente o direito à memória e o direito à moradia, temas tão caros e básicos da existência humana. O diálogo se faz mais do que necessário e recorrente, é uma luta pela sobrevivência. Assim, encerro esse pequeno texto com um trecho da música composta pelo carioca Haroldo Lobo, outro morador ilustre ignorado da história do bairro do Jardim Botânico, nem recebeu uma justa homenagem local quando faleceu em 1965, apesar de mais de seiscentas composições elaboradas, muitas reconhecidas e cantadas no nosso carnaval.


Então, “tristeza, por favor vai embora, minha alma que chora, está vendo o meu fim, fez do meu coração a sua moradia, já é demais o meu penar, quero voltar aquela vida de alegria, quero de novo cantar”. Que a tristeza deixe os corações e as almas dos brasileiros e das brasileiras. Dito isso, relembro algo que aprendi na faculdade através da leitura do historiador britânico Peter Burke, cabe ao historiador ou historiadora relembrar aquilo que a sociedade quer esquecer, mesmo que a desagrade, uma vez que a incompreensão do presente é resultado da ignorância em relação ao passado. A ignorância aponto como o sentido de desconhecer ou de ignorar. Assim, o duelo entre o presente e o passado, ou ainda, a memória e o esquecimento são constantemente alvos de disputas, muitas vezes influenciadas por fake news e por interesses específicos. O belíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro A paixão medida (1980), revela em seus versos algumas particularidades do papel do historiador e da História, que compartilho como um tributo à minha profissão:


Historiador


Veio para ressuscitar o tempo e escalpelar os mortos, as condecorações, as liturgias, as espadas, o espectro das fazendas submergidas, o muro de pedra entre membros da família, o ardido queixume das solteironas, os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas nem desfeitas.

Veio para contar o que não faz jus a ser glorificado e se deposita, grânulo, no poço vazio da memória. É importuno, sabe-se importuno e insiste,

rancoroso, fiel.


* Luciene Carris é pesquisadora e historiadora (UERJ).


Referências:


CARRIS, Luciene; MANO Luis Felipe. Recanto (Documentário sobre a comunidade do Horto, 2018, 31 min.). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ow-k9K6Fi-8&t=150s Acesso em: 30 de jun. 2021.


CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História Pública: uma breve bibliografia comentada. (Bibliografia Comentada). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-biblio/. Publicado em: 6 nov. 2017. Acesso: 30 jun. 2021.


MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.


SOUZA, Laura Olivieri Carneiro de. Horto Florestal: um lugar de memória da cidade do Rio de Janeiro. A construção do Museu do Horto e seu correspondente projeto social de memória. Tese de Doutorado, Departamento de Serviço Social, PUC-Rio, 2012.


TAKIMOTO, Elika. Como dialogar com um negacionista. São Paulo: Livraria da Física, 2021.

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