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“Urbanismo afroconfrarial”: o protagonismo negro na produção do espaço urbano do Rio de Janeiro Setecentista

Rio de Janeiro, 15 de junho de 2024.

Marcos Coutinho*


Os territórios negros do Rio de Janeiro Colonial: o corpo, a irmandade, o templo


O corpo negro constituiu-se como unidade medular para o funcionamento da sociedade colonial brasileira. Além da presença física, foi responsável também por criar e reproduzir as relações sociais e os espaços de poder. No contexto da escravidão, o discurso dominante procurou a todo custo desumanizar o corpo negro à medida que o retratava como uma “máquina” destituída de vontade e inteligência. E essa desumanização visava a controlar e disciplinar os africanos a fim de mantê-los sob constante vigilância e, assim, restringir a sua mobilidade.



Figura 1 – Igrejas negras como promotoras da expansão e da “drenagem” urbanas


Crédito da imagem: ImagineRio. Mapa elaborado pelo autor. 


O trabalho compulsório e o medo da morte, longe de tornar o corpo negro um espaço totalitário, impulsionaram a autoconsciência e a resistência do escravizado. A partir deste entendimento, o africano passou a se reconhecer e a criar os meios necessários à sua autopreservação, transformando o próprio corpo em espaço de solidariedade e memória. Trata-se de um processo que levou à criação do “território-irmandade”, um espaço de r-existência das associações comunitárias negras e um dos componentes centrais da configuração do território urbano carioca.

 

A objetificação do território-corpo negro havia-o destituído da condição de ser humano, reduzindo-o ao patamar de reles “mercadoria”. As irmandades religiosas, ao contrário, representavam instituições assistencialistas semiautônomas, com pouca intervenção clerical e exaltadoras da força do laicato na Igreja pós-tridentina. Quando a matriz do regime de autoridade abria uma brecha e não conseguia impedir que dois elementos considerados tão díspares se unissem e formassem uma irmandade negra – ente que assegurava proteção e assistência material e espiritual a quem sequer era percebido como humano –, era aí que se encontrava o “dissenso”: pois o modo de autorização discursiva foi sempre instituído contra o ativismo subalterno, e toda vez que a confraria o desautorizava, servindo de plataforma de inserção social e de outorga de liberdade para escravizados, ela esboçava a “contradição”, o “paradoxo”, em virtude dos espaços de “representação” que poderia forjar.


O Cristianismo africano, ao reinterpretar símbolos e práticas cristãs, foi essencial para a integração dos negros e seus descendentes nas colônias portuguesas. As afroconfrarias surgiram como espaços de resistência cultural e religiosa, funcionando como “agências” de luta e preservação da identidade coletiva da diáspora. As associações subalternas mais importantes, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, a Irmandade do Glorioso São Domingos de Gusmão, a Venerável Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia e a Venerável Confraria de Nossa Senhora da Lampadosa, foram fundamentais para a representatividade política e social dos grupos étnicos marginalizados na cidade do Rio de Janeiro.


Tais agremiações atuavam como “lugares de fala” e resistência contra a ordem hegemônica. O território-templo negro, ao se converter em espaço de representação, permitiu aos congregados reivindicarem seus direitos e existirem além das imposições do sistema colonial. As iniciativas desses sodalícios, como a construção de igrejas e a redação de petições ao rei de Portugal, demonstraram uma luta contínua pela existência e pela capacidade de ter voz em uma sociedade opressora.



Figura 2 – Urbanismo e quadrilátero “afroconfrariais”

Crédito da imagem: ImagineRio. Mapa elaborado pelo autor.



Legenda:

IgRSB – Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos;

IgGSD – Igreja do Glorioso São Domingos de Gusmão;

IgSEE – Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia;

IgNSL – Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa.



O papel das afroirmandades cariocas na construção do espaço urbano


O preconceito racial foi um dos pilares estruturais das desigualdades sociais no Brasil-Colônia. No entanto, o escravismo também deve ser visto como um sistema produtor de potências, já que não se pode esquecer o protagonismo dos negros escravizados no processo de formação social brasileiro. É nesse contexto que se busca resgatar a contribuição de quatro irmandades negras — Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, São Domingos de Gusmão, Santo Elesbão e Santa Efigênia e Nossa Senhora da Lampadosa — na produção do espaço urbano do Rio de Janeiro durante o século XVIII.


Porém, no final do século XVII, as irmandades negras começaram a aforar terrenos no Campo da Cidade, um local além dos limites urbanos, recoberto por charcos e brejos. Com esforço comunitário, os irmãos executaram obras de saneamento e terraplanagem, construindo igrejas e promovendo o desenvolvimento urbano dessas áreas. Este movimento supriu as funções da Coroa e transformou a geomorfologia local.


A construção dos templos foi um ponto fundamental para a expansão urbana do Rio de Janeiro, pois além de melhorar as áreas ao redor, a igreja se transformou em centro de atração populacional, fomentando a construção de novas moradias e de uma infraestrutura mínima. As irmandades negras assumiram uma função especial naquele tempo como saneadoras do espaço urbano, drenando áreas pantanosas e promovendo a expansão da cidade.


Forjou-se, então, como fruto de uma iniciativa subalterna, o “urbanismo afroconfrarial”: um tipo de produção do espaço urbano constituída a partir das “fábricas” construtivas de “templos negros”, promotoras da segunda malha urbana periférica transformada em arrabalde – o quadrilátero “afroconfrarial”. Igrejas que se constituíram em “raias” ou “marcos” espalhados por um tecido que sistematicamente ajudaram a “sanear” e urbanizar, retratando os processos de parcelamento e acumulação de propriedades fundiária e imobiliária. A presença física dos templos trouxe certa ordem urbana, aguçando ainda mais a procura por lotes neste espaço e fazendo da arquitetura religiosa negra, na tentativa de minimizar a política de afastamento social, um campo de interlocução com a matriz dominante. Se o tema em pauta for o processo de urbanização do Rio de Janeiro durante o século XVIII, o “urbanismo afroconfrarial” não pode ser esquecido ou silenciado, devendo entrar na memória e na história da cidade com a mesma agência e importância alcançadas pelas instituições eclesiásticas hegemônicas – eis a envergadura da diáspora africana na produção do espaço urbano carioca!


O griô está em terra, que não haja mais silêncio entre nós


Sabemos que a história tem nos mostrado o quanto a invisibilidade pode matar. Assim, quando uma irmandade negra reivindicava o direito de ter voz, de se expressar, estava, na verdade, reivindicando o direito à própria existência. É por isso que os contradiscursos têm a pretensão de contestar a razão colonial a fim de inserir no debate os agentes hegemonizados – seres capazes de falarem por si e de ocuparem lugares outros que não somente os de escravizados. Com isso, reafirmamos a nossa preocupação de recuperar os lugares de potência como “ferramentas” eficazes de interrupção do regime de autoridade hegemônica. Ao demonstrar que as afroirmandades cariocas “falaram” como produtoras do espaço urbano setecentista, rompemos definitivamente com a lógica de que os subalternizados não estavam qualificados para produzir de outras localizações e de pensar na própria posição social que ocupavam.


O tempo urge, tenhamos pressa. É chegada a hora de reinterpretarmos as narrativas. Ouçamos, no despertar dos tambores, o clamor por justiça imediata. Desacorrentemos a história, recuperemos a memória, restituamos as proezas e saberes dos negros de antanho. Que nos devolvam de África os tons e as nuances retintas que o racismo epistêmico insiste em manter sufocados nos porões dos tumbeiros. Que tenhamos tal fato sempre à lembrança para que maafa assim nunca mais nos acometa. E que corra a notícia de que o griô está em terra, e que, por isso, não haverá mais silêncio entre nós.


 

  

*Marcos Coutinho é Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-Rio, mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutorando em História, Política e Bens Culturais pela FGV/CPDOC. Atualmente, os principais temas de seu interesse dão ênfase ao estudo das sociedades coloniais ibero-americanas e a sua diversidade étnico-cultural, advinda, principalmente, da interação entre europeus e africanos e da participação da Igreja Católica e de suas instituições como promotoras da expansão urbana das cidades coloniais. É autor do artigo “A produção (negra) do espaço urbano (branco) do Rio de Janeiro Setecentista – século XVIII”. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/mosaico/article/view/85728.

 

 

 

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