Rio de Janeiro, 21 de julho de 2023.
Luciene Carris*
A partir do dia 10 de março de 2008, a lei 11645, tornou-se obrigatório incluir o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos currículos dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio em todo o território brasileiro. Além disso, essa obrigatoriedade também se estende aos cursos de formação de professores, os quais devem oferecer disciplinas que preparem os futuros docentes para abordar esses temas em suas práticas educativas.
Maracá (instrumento musical indígena).
Crédito da imagem: Acervo/FUNAI.
Essa mudança foi implementada para combater a ausência de conhecimentos sobre a história e cultura dos povos indígenas e afro-brasileiros no ensino tradicional, que contribui para perpetuar uma visão de mundo eurocêntrica. A falta de inclusão desses estudos no currículo principal das licenciaturas coopera para a disseminação de preconceitos e estereótipos raciais e culturais, além de criar uma atmosfera de intolerância cultural e religiosa. Não é demais destacar que a educação desempenha um papel fundamental nesse processo de conscientização e promoção da igualdade, contribuindo para a formação de cidadãos mais conscientes, críticos e respeitosos com a diversidade cultural e étnica do Brasil, conforme previa a Constituição Federal de 1988, que garante direitos aos indígenas e quilombolas, desse modo, “o texto constitucional incorporou uma concepção de igualdade, afastou as perspectivas assimilacionistas, garantiu o reconhecimento dos costumes, línguas, crenças e suas tradições” (MORAES; CAMPOS, 2018, p. 16).
Vale a pena recordar que o processo de inclusão da história e cultura indígena, africana e afro-brasileira no currículo escolar tem uma trajetória mais longa. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 já previa que o estudo da história do Brasil deveria abranger as culturas indígenas, africanas e europeias na formação do povo brasileiro (MORAES; CAMPOS, 2018, p. 14-15). No Rio de Janeiro, as universidades do Estado, como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Universidade Estadual do Norte Fluminense, foram pioneiras na implementação de políticas de cotas para alunos provenientes de escolas públicas que se autodeclarassem negros ou pardos.
Tais ações iniciadas a partir de 2000 tinham como intuito de promover maior inclusão e oportunidades iguais no acesso ao ensino superior. Posteriormente, a LDB passou por uma alteração em 2003, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura africana e afro-brasileira no currículo do ensino fundamental e médio. Essa medida foi um marco importante na luta contra o racismo estrutural e a invisibilidade histórica dos povos africanos e afrodescendentes na cultura brasileira.
Apesar da existência de leis voltadas para combater o racismo, é inegável que estereótipos e atitudes racistas ainda permeiam o cotidiano, seja de forma sutil ou explícita. Diariamente, nos deparamos com exemplos disso nos noticiários e nas redes sociais. Diante dessa realidade, é fundamental que busquemos uma educação antirracista que vá além da simples denúncia do preconceito racial. A reflexão sobre uma educação antirracista requer uma abordagem abrangente, englobando tanto o ambiente escolar e universitário quanto toda a sociedade, bem como espaços formais e não-formais, onde possamos discutir, estimular o debate e a formação consciência étnico-racial, a partir de uma perspectiva interseccional.
Desde modo, a este exemplo, aponto um encontro ocorrido no Instituto Casa das Pretas em junho de 2023, uma roda de conversa que contou com a participação da escritora indígena Auritha Tabajara, promovido pelo Viramundo: Laboratório de Geografias Populares da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, liderado pela professora Julia Andrade do departamento de Geografia, e que teve a presença de outras estudiosas, acadêmicas e escritoras indígenas como Lucia Morais Tucuju. O encontro foi uma oportunidade para discutir tradições e realidades das comunidades indígenas no Brasil, e, além de tudo, conhecer a rica literatura indígena feminina, até então pouco difundida.
Natural de Ipueiras, no litoral cearense, Auritha Tabajara é uma escritora, cordelista, atriz e contadora de histórias, considerada a primeira cordelista indígena do Brasil. Nascida como Francisca Aurilene, foi proibida a adoção de seu nome ancestral no cartório quando nasceu em casa pelas mãos de sua avó parteira e contadora de histórias. Auritha é neta de uma das maiores contadoras de história do povo Tabajara, Francisca Gomes, e aos nove anos, ela já demonstrava seu talento e paixão pela escrita, começando a rascunhar o que, mais tarde, se tornaria sua obra Coração da aldeia, pés no mundo (2018), que conta com xilogravuras de Regina Drozima, e que revela elementos autobiográficos, bem como homenageia os cordéis clássicos.
Em 2004, seu primeiro Magistério indígena em prosa e verso foi publicado e adotado pela Secretaria de Educação do Ceará. Em 2023, a escritora indígena publicou um livro em homenagem ao centenário de nascimento de Darcy Ribeiro, um projeto que foi realizado com recursos do prêmio concedido pelo edital “100 anos de Darcy Ribeiro”. O cordel intitulado Darcy Ribeiro de cá e de lá, conta com ilustrações de Caio Zero, e é uma belíssima homenagem ao intelectual que se destacou pela defesa dos povos indígenas e de uma educação pública e de qualidade. Como se observa nos versos abaixo do cordel um trecho dessa homenagem, que apresenta a expectativa de novos defensores dos povos originários:
Que muitos Darcy Ribeiro
No Brasil possam nascer,
Com bravura, sabedoria,
Vontade para escrever.
Que ensine a gente a pensar,
Fazer, também duvidar,
Das culturas não esquecer
Aliás, a literatura de cordel, caracterizada por poemas curtos e rimados, impressos em folhetos, muitas vezes acompanhados por ilustrações coloridas, abordam diversos temas, o que garante a riqueza e a variedade dessa genuína expressão artística nordestina. Por sua vez, Lucia Morais Tucuju, de origem indígena do povo Kumarumã de Macapá-Amapá, é atriz, contadora de histórias e educadora, publicou o livro de poesias Tucumã (2021), com ilustrações de Adilson Dias, que enaltecem os povos indígenas, uma obra considerada como “um mergulho poético na Amazônia”, como se lê a seguir:
Ancestralidade
Floresta, rios, encantos
Sabedora, memória, raça
Reza benzedeiras, erva
Histórias quentinhas do coração
Permeiam a cultura de povos
Habitam nossa nação
Honrar com dignidade
Manter a chama acesa
Da história de cada um
A literatura indígena nos últimos anos encontra-se em vertiginoso crescimento no país, observa-se a disseminação de muitos escritores indígenas como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, Ailton Krenak, Graça Graúna, Kaká Werá, Cristino Wapichana, Aline Pachamama, além das citadas Auritha Tabajara e Lucia Morais Tucuju, e tantos outros e outras, que refletem sobre a diversidade cultural e étnica dos povos originários, cuja literatura tem suas raízes na tradição oral, mas que não envolve somente a oralidade. As suas narrativas englobam a expressão oral, escrita e visual, como a dança, a música, ilustrações e a entonação das palavras, entre outros elmentos. Desse modo, a publicação de seus textos pode contribuir para a aproximação dos povos indígenas e da sociedade, bem como para a promoção do letramento cultural e literário sobre a literatura indígena, bem como na luta antirrascista e contra esteriótipos ainda arraigados no imaginário popular. Como bem apontou Janice Cristine Thiél, “a leitura de obras da literatura indígena problematiza conceitos, desconstrói estereótipos, promoves a reflexão sobre a presença dos índios na história e sobre a forma como sua palavra e tradição narrativa/poética são apresentadas em sua especificidade” (THIÉL, 2012).
Referências:
MORAES, Renata Figueiredo; CAMPOS, Sabrina Machado. O ensino de história e cultura indígena e afro-brasileira: mudanças e desafios de uma década de obrigatoriedade. Revista Transversos, UERJ, Rio de Janeiro, n. 13, mai.-ago., 2018.
TABAJARA, Auritha. Darcy Ribeiro de cá e de lá. Rio de Janeiro: Bambual Editora, 2023.
_______. Coração na aldeia, pés no mundo. Lorena: UK´A Editorial, 2018.
THIÉL, Janice Cristine. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. BH, SP: Autêntica, 2012.
TUCUJU, Lucia Morais. Tucumã. Belo Horizonte: Páginas Editora, 2021.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
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