Toronto, 01 de novembro de 2021.
André Sena*
Crédito: Dreamtime.
O escritor norte-americano Eric Hubbard certa vez afirmou a existência de Deus, ressignificando o nome de seu mais famoso rival: Satanás. Em 1923, disse Hubbard: “God is good. There is no devil but fear.” (D-us é bom. Não há outro demônio que não seja o medo.” Um dos nossos mais imemoriais companheiros, o medo vem se tornando objeto de análise e reflexão em vários campos do saber humano. Nas humanidades encontramos o fantástico trabalho da historiadora britânica Joanna Bourke Fear. A Culture History (Medo. Uma História Cultural), publicado há pouco mais de uma década. Ali, a historiadora aborda a questão do medo como um fator cultural no ocidente nos últimos 200 anos, desde a literatura apavorante de Edgar Allan Poe, passando pela questão de uma certa indústria do entretenimento em torno do medo, e chegando inclusive às fobias que hoje acreditamos controlar neuroquímica ou terapeuticamente.
O medo da morte talvez tenha sido a mais dilacerante e histórica das nossas emoções. Textos que fundam o nosso imaginário judaico-cristão nos mostram, já em seus primeiros livros um irmão sendo assassinado por outro. De Thomas Hobbes a Cruz e Souza, a literatura sobre a morte (ou o pavor que ela nos provoca) é tão sensacional quanto incontável. O autor de O Leviatã construiu toda uma filosofia política a partir da constatação do medo humano da morte violenta. Medo que incita o homem a trocar sua própria liberdade por segurança. Já o maior nome do simbolismo brasileiro descreveu a morte como aquela que interrompe muito mais do que nosso ciclo vital e orgânico; mas como a que desarticula, aniquila e faz desaparecer nossos projetos de vida. “Lá vem a loba, que devora os sonhos”, declara Cruz e Souza em seus Últimos Sonetos, metaforizando a morte em uma imagem feroz e canina.
Ao assistirmos o filme Sonhos, de Akira Kurossawa, nos deparamos, no entanto, com uma percepção diferente e divorciada do medo da finitude. Um dos mais famosos filmes da cinematografia do autor de Ran e Dodeskaden, Sonhos é uma sessão de quadros inteiramente independentes sobre diversas fantasias. Seu último episódio mostra um enterro sendo celebrado festivamente em uma aldeia no interior do Japão. O ambiente pastoril e bucólico é colorido por musicalidade, bandas, crianças, danças e cantos em torno de um cadáver e ser inumado.
Nada mais próximo disso do que o legado festeiro e cultural da Zambiapunga, que se consolidou ao longo dos séculos pelo nordeste brasileiro, especialmente pelo Baixo Sul da Bahia, em cidades como Itacaré, Nilo Peçanha, Cairú, Caraíba e Boipeba. O legado da civilização Bantu, que chegou acorrentada em nossas terras, naquilo que Jorge Amado definira como o “comércio infame”, criou raízes e injetou em nosso patrimônio cultural o remédio para o medo da morte, dos mortos, da loba que nos revela o poeta brasileiro, da troca injusta e cruel que nos anuncia o filósofo inglês.
A festa da Zambiapunga, do original Bantu Nzambi Mpungu, pode durar até dois dias, com pendor festeiro para a véspera do Dia de Finados, ocorrendo por tanto entre os dias 1 e 2 de novembro, possivelmente desde o século XVIII. Como no filme de Kurossawa, o ambiente festivo impera nas ruas e praças das cidades que listei e em outras, onde versões variadas dos mesmos festejos acontecem. O colorido das roupas, o estrépito dos apitos, búzios gigantes e enxadas percussivas começava inicialmente de madrugada, criando um ambiente de ruptura com o silêncio dos túmulos. Hoje ocorre na clareza do dia, porque o enfrentamento do nosso medo da morte não tem hora certa. Em outras regiões, como pelos arredores de Valença, a Zambiapunga pode também ocorrer no final de janeiro, especialmente em seu último domingo.
Era noite, estava deitada. / Corria festa no ar. / Corri depressa, fui olhar. / Era a Zambiapunga a passar. / Nas ruas de Valença / Vou mostrar ao mundo inteiro. / Com cores exuberantes / o Zambiapunga brasileiro.
As máscaras do Zambiapunga, que adereçam os caretas durante a brincadeira e a dança, são entretanto um objeto estético revelador. Tratam dos tempos da escravidão na sua dimensão mais macabra, quando escravos fugidos eram capturados, severamente punidos e expressavam o transtorno da dor provocada pelo açoite, frequentemente antecedido pela chegada da morte no tronco, ou na fogueira. O mestre músico e folclorista baiano Antenógenes da Paixão descreve o medo que sentia dos caretas quando criança, e de como sua mãe o inseriu nos grupos de Zambiapunga para que ele superasse essa fragilidade.
Crédito: Francisco Moreira.
A Zambiapunga comemora a vida, a sua celebração e o enfrentamento da morte com cores, tambores e festa. Nasceu como um brinquedo furioso no meio do flagelo escravista, mancha indelével em nossa história. Mas sobreviveu ao modo de produção que produziu senzalas e quilombos, tornando-se hoje um manifesto debochado e sorridente diante da memória da morte, melancolicamente vivenciada em novembro no Brasil. Alguns já o apelidaram de Haloween brasileiro. Discordo, acho reducionista e simplificador. O que os Bantus nos deixaram por aqui me parece bem mais pungente e divertido. Pouco conhecido, admito. Mas essa culpa não é dos zambiapungueiros. É nossa.
Em um país que parece estar caminhando para o cemitério, nada mais interessante do que olharmos de perto esta festa, que nos convida a rir na cara da morte, e a insistir que a vida deve ser nosso ponto de encontro, nas ruas de Itacaré, Valença, ou quem sabe, nas rampas de Brasília.
*André Sena é historiador (UERJ).
Referências:
BOURKE, Joanna. Fear. A Culture History. Ed. Counterpoint, 2007.
JUNKES, Lauro (org.) CRUZ e SOUZA. Obra Completa. Ed. Avenida, 2008.
SECRETARIA DE CULTURA DA BAHIA. Zambiapunga pode se tornar patrimônio imaterial da Bahia. In: http://www.cultura.ba.gov.br/.
OLIVEIRA, Lula (dir.). Trilha Patrimonial dos Caretas e Zambiapungas. (documentário). Realização: IDES – Instituto do Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul da Bahia.
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